Todos sabemos que a sociedade portuguesa mudou profundamente ao longo dos últimos cem anos, embora nem todos tenham perfeita consciência da amplitude das mudanças nem das suas consequências.
Neste período Portugal viveu duas guerras mundiais, ainda que só tenha participado directamente na primeira, com o envio do Corpo Expedicionário Português para a Flandres em 1917, da qual resultaram mortos, feridos e doentes devido aos gaseamentos alemães. Mas a influência da segunda, apesar de termos ficado formalmente de fora da contenda, trouxe consequências ao nível dos racionamentos.
No último século experimentámos também duas pandemias: a gripe espanhola em 1918 e a Covid-19 recentemente, com todos os impactos inerentes na mortalidade, economia, emprego e saúde física e mental.
Nos anos sessenta do século passado deu-se ainda um extraordinário movimento migratório para a Europa e o país enfrentou uma guerra colonial em três frentes, com custos muito pesados, em consequência da qual os territórios ultramarinos ascenderam à independência, com o regresso dramático de cerca dum milhão de “retornados”.
Mas este tempo não foi só de desgraças. O país entrou na União Europeia (então Comunidade Económica Europeia), e evoluiu exponencialmente em matéria de saúde, educação, ciência e tecnologia. Indústria e comércio reconverteram-se, surgiram novas profissões (enquanto se iam extinguindo algumas antigas), passou a dar-se mais atenção ao ambiente, os consumidores aumentaram o seu grau de exigência e os direitos humanos estão agora no centro das preocupações gerais.
Se o país mudou radicalmente, a população também. Os cidadãos com mais de 65 anos passaram a contar viver muito mais tempo, e a proporção de nascidos com esperança de atingir os 65 anos subiu de 34% para 89%.
Segundo a demógrafa Maria João Valente Rosa: “Vivemos, em média, mais anos do que no passado e somos hoje muito diferentes dos nossos pais ou avós quando tinham a mesma idade cronológica que nós: mais escolarizados, mais próximos das novas tecnologias, mais conectados em redes, com mais individualidade e trajetórias de vida familiar e profissional menos lineares.
Portugal deixou de ter assegurada a substituição de gerações, a idade média das mães ao nascimento do primeiro filho já é superior a 30 anos, a maioria dos nascimentos acontece fora do casamento, existem mais pessoas nas idades superiores e menos nas idades jovens, o número de gerações em simultâneo cresceu, as relações sociais são mais efémeras e maleáveis, a inteligência artificial está mais presente nas nossas vidas.”
Quem olha para trás ao estilo “No meu tempo é que era bom” está destinado a sentir-se fora do mundo. Nós, os nossos velhos e os nossos filhos somos todos diferentes do antigamente. Para o bem e para o mal. Há que nos adaptarmos ao novo mundo que aí está. A ciência diz-nos que não são os mais fortes que sobrevivem, mas sim aqueles que melhor se adaptam ao ambiente a cada momento.
Vivemos mais tempo, com mais idosos e menos crianças, cujos pais as têm cada vez mais tarde e em menor número, temos mais saúde e melhores cuidados de saúde mas enfrentamos novos desafios sanitários. Pelo menos cinquenta por cento dos bebés nascidos hoje em Portugal poderão ultrapassar os 100 anos. Mais de sessenta por cento das crianças que nascem agora vão trabalhar um dia em funções e profissões que ainda não existem, o que significa que o mercado de trabalho sofrerá profundas mutações, pressionado também pela robótica. A reforma “passiva” está a ser substituída pelo “envelhecimento activo”, e já não há um padrão social único para os mais idosos, pelo que as respostas sociais e culturais têm que apelar à imaginação e criatividade.
Isto significa que os partidos políticos têm que mudar, tal como os sindicatos, as empresas e organizações, a comunicação social, a relação dos cidadãos com o Estado e dos consumidores com os fornecedores de serviços e bens. A escola tem que mudar (a nossa ainda tem o ADN do séc. XIX!), tal como a universidade. Até a prática religiosa vai mudando, quer se queira quer não. Mas isso são contas de outro rosário.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/Muda-se o ser, muda-se a confiança;/Todo o mundo é composto de mudança,/Tomando sempre novas qualidades.” Isto dizia Camões no séc. XVI. E estava coberto de razão
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