A estória começa com outra loucura, como não podia deixar de ser. O jornal The Salt Lake Tribune conta que o estado norte-americano do Utah, berço do Mormonismo, pressionado por grupos conservadores fez aprovar no ano passado uma lei que permite às escolas retirar da circulação livros didácticos considerados impróprios para os alunos. Esta legislação pretende assim censurar obras que tratem sobre temáticas raciais ou minorias sexuais.
Em resultado da vigência da lei inúmeros livros começaram a ser retirados das escolas na sequência de denúncias. A idiotice chegou a tal ponto que até o poema de Amanda Gorman, lido pela jovem afro-americana na tomada de posse do presidente Biden, em 2021, foi censurado por uma escola de Miami por ser considerado impróprio para crianças.
Sucede que um encarregado de educação, frustrado pelos ataques à liberdade de expressão no país decidiu reagir, e fê-lo de forma superiormente inteligente, interpretando o espírito da lei, ao invocar que a Bíblia também contém matéria sobre incesto, violação e prostituição. Assim e ao abrigo da dita lei, pediu a sua remoção das escolas visto que pode ser considerada uma obra pornográfica, com conteúdo sexual e violento. Em consequência da denúncia deste pai todos os volumes da Bíblia foram retirados das escolas do estado de ensino básico ou médio.
O mais estranho é que até um congressista republicano que promoveu esta lei inenarrável veio defender a ideia de que a Bíblia é de “leitura difícil” e que a melhor maneira de a ler é em casa “ em volta da lareira e em família”… Isto diz bem da visão distorcida que muitos políticos têm da sociedade americana. Quantas famílias tradicionais existirão nos EUA? Quantas têm lareira? E quantos membros das famílias não trabalham por turnos e têm a possibilidade de se reunir em casa ao mesmo tempo?
Mas isto fala também da guerra cultural que prolifera entre republicanos e democratas, e que está a cavar uma perigosa trincheira na grande nação americana. Os estados mais conservadores parece não entenderem que já não vivemos no século XIX, que a sociedade é o que é e não se pode parar o vento com as mãos. Por outro lado, os mais liberais também não entendem que as mentalidades não se mudam apenas por discursos ou leis.
Mas não deixa de ser ironicamente triste que um país que foi fundado na religião, de certo modo, que pugna pela liberdade religiosa e defende a liberdade dos cidadãos em todas as áreas, esteja a entrar numa deriva totalitária, através da censura aos livros, de modo a tentar travar artificialmente as ideias progressistas, a violência ou a homossexualidade. A cereja no topo do bolo é, sem dúvida, a proibição da Bíblia nas escolas, aquela que é a obra mais determinante na civilização ocidental.
Embora o recurso à lei inqualificável do Utah tenha servido de pretexto para a ridicularizar ao aplicar os seus pressupostos à própria Bíblia, a verdade é que muito boa gente não compreende por que razão o livro sagrado da fé cristã comporta relatos de violência, incesto, violação e outros péssimos exemplos. Aliás, também se verifica o mesmo nas outras religiões abraâmicas, tanto no judaísmo, com a Tanak, a Bíblia hebraica, como no Islão, com o Corão.
Mas a razão é muito simples. Os livros sagrados revelam antes de mais a natureza humana da qual fazem parte o bom e o mau. No tocante à Bíblia, ela deve ser vista como um mapa. Da mesma forma como os mapas mostram os caminhos seguros também revelam perigos como desfiladeiros ou pântanos, mas a escolha do trajecto é sempre do viajante.
Mesmo no Antigo Testamento, onde se encontram as grandes dificuldades nesta matéria, a honestidade intelectual tem que nos levar a compreender que os hebreus e seus descendentes escreveram o que escreveram há milhares de anos, em consonância com o conceito que então tinham da divindade. Ninguém de boa-fé lê um texto antigo com os óculos do homem contemporâneo. Se não o fazemos com a Odisseia de Homero ou a Eneida de Virgílio, por que razão o podemos fazer com o Antigo Testamento?
Parece-me que este terá sido o grande erro de Saramago em obras como o “Evangelho de Jesus Cristo”. No entanto não passa pela cabeça de ninguém de bom senso proibir o livro ou sequer vetá-lo de concorrer a prémios literários, como fez um iluminado secretário de Estado da Cultura de Portugal em tempos que já lá vão.
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