Podíamos chamar-lhe o “jeitinho brasileiro”, mas seria fofo demais. Basta assistir a uma sessão parlamentar. Eles falam por cima uns dos outros, andam em pé constantemente dum lado para o outro, berram, insultam, agridem-se verbalmente, colocam-se atrás da mesa da presidência para pressionar e promovem cenas pouco edificantes nos corredores. Os nossos deputados mais aguerridos parecem meninos de coro ao pé deles. Bem sei que há parlamentos asiáticos onde as cenas de pugilato entre os deputados acontecem com alguma frequência. É só mesmo o que falta aqui.
Mas no meio religioso não é muito diferente. Se ouvirmos boa parte dos programas das muitas rádios locais evangélicas ficamos com os ouvidos lesionados pela gritaria. Coisa semelhante sucede em muitos cultos, em particular no sector pentecostal, onde parece que o Deus celebrado e os seus fiéis formam uma república de surdos. Já para não falar na forma agressiva com que pastores como Silas Malafaia se dirigem aos fiéis ou em programa de televisão, a insultar colegas, chamando-lhes trouxas, calhordas ou vagabundos…
Na cultura tupiniquim tudo é feito com os nervos à flor da pele, muita emoção, muito ruído, muita cor, muita confusão. Mas se o calor das intervenções pode ser considerado marca cultural, já a falta de decoro, urbanidade e de respeito pelos outros, na casa da democracia ou nos templos não tem perdão. Em suma, não passa daquilo que se chama falta de educação.
Esta marca distintiva ajuda a compreender como foi possível eleger como presidente da república uma figura como Jair Bolsonaro. Um indivíduo racista, misógino, bruto, ignorante, mentiroso, corrupto, sem empatia pelos pobres nem misericórdia pelos doentes, defensor da ditadura e apoiante da tortura, como se atesta pelas suas intervenções públicas. É que o seu estilo caceteiro foi facilmente “normalizado” pelo ethos cultural.
Claro que há outras razões que justificam a sua eleição em 2018, como alguns erros cometidos pelo Partido dos Trabalhadores (PT) que afrontaram o meio evangélico e o nível da corrupção. Dramaticamente, porém, o país irmão chegou a estas eleições com um governo Bolsonaro corrupto (há um ex-ministro na cadeia), incluindo suspeitas graves e investigações judiciais a toda a família do presidente.
Desta vez Lula parece mais moderado, se é que aprendeu com as lições do passado. Foi buscar um homem de centro-direita para o lugar de vice, criou uma frente democrática e está mais atento a todos os sectores da sociedade.
Mas o Brasil continua com um problema grave, oscila entre dois polos, o PT ou a extrema-direita. Falta uma representação política sólida e coerente da classe média e do centro do espectro político, que até agora tem feito o papel de prostituta de serviço: vai com quem lhe paga, seja o governo de direita ou de esquerda. O ethos tende a exacerbar os extremos também na arquitectura política, transformando-a numa polarização que não é saudável. Às tantas, em vez de discutir o essencial, projectos, programas e ideias políticas discutem-se pessoas, levantam-se processos de intenção e de caminho utilizam-se toda a sorte de golpes baixos para levar a água ao moinho.
É claro que quando os maus exemplos vêm de cima tudo se corrompe. O que sucederia se Marcelo chamasse publicamente canalha e vagabundo ao presidente do nosso Tribunal Constitucional? Pois foi isso mesmo que Bolsonaro fez ao presidente dum tribunal superior, sem consequências… Como mente constante e descaradamente, os seus ministros e apoiantes fazem o mesmo. Nem os líderes religiosos do governo escapam. Para justificar a agressão de um deputado bolsonarista a uma jornalista que estava a trabalhar num sessão parlamentar, a ministra (e pastora) Damares mentiu, ao falsificar as palavras que aquela tinha proferido uns dias antes.
Derrotar Bolsonaro nestas eleições era uma medida nacional de higienização da vida pública. O ethos brasileiro não vai mudar nem o cancro maléfico do bolsonarismo desaparecer tão depressa, mas ao menos talvez dê para recomeçar e lançar as bases do respeito comum e da cidadania. Assim o novo presidente tenha a sabedoria para o fazer, voltando a investir na educação, erradicar a fome em que mergulham hoje milhões de brasileiros, dar fim à destruição ambiental, acabar com a venda desordenada de armas e fazer o país desenvolver num quadro de justiça social e de promoção da dignidade humana.
Agora que Lula é o presidente eleito importa recordar que, se é um ex-presidiária como lhe gostam de chamar os bolsonaristas, para o apoucar, Bolsonaro também o é. Mas a memória é curta e a ignorância domina.
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