São 16h30. A esta hora, uma espécie de formigueiro invade a mãe, depois de um sobressalto. Contas de cabeça. Quanto tempo é preciso para chegar a horas à escola? Estará trânsito? Há um colega que faz conversa, distraído. Um chefe que se aproxima com uma ideia nova de trabalho, que quer discutir. E o relógio está lá, avançando, mesmo que se sustenha a respiração. Sustém-se a respiração. Fará isso parar o tempo? A culpa espeta-nos como pequenas agulhas. Sabemos que falhamos, falhamos sempre. Os minutos derrapam. É já impossível garantir que se chegará a horas. Mas quando a mãe finalmente se levanta, tentando tornar invisíveis os gestos da saída, leva olhares de reprovação cravados nas costas, que lhe pesam como se fossem pedras atiradas ao corpo. Falhou, falha sempre.
As notícias estão cheias de alertas sobre a natalidade. É preciso produzir crianças. Mas não qualquer criança. Toda a gente sabe como se reprova quem tem filhos e não tem como lhes dar comida nem teto. Não há tradução que faça jus à pergunta que fica assim tão clara em Inglês: “Can you afford having children?” Será que podemos dar-nos ao luxo de nos reproduzir? E quantas vezes podemos fazê-lo?
A mãe chega à escola. Está um pouco atrasada, mas não muito. E tenta ouvir os relatos do dia, acalmar as brigas dos irmãos, perceber onde estão os casacos que se levaram de manhã. O telefone toca e estremece, uma e outra vez. E sabe que se o ignorar vai perder mais uma oportunidade, haverá trabalho que se acumula, perguntas que ficam sem resposta. Ignora-o tempo suficiente para isso se tornar um problema, tempo de menos para dar atenção aos filhos. E tem de repente a sensação de que a infância deles lhe há de escapar entre os dedos enquanto responde a emails e mensagens. Talvez da próxima vez que levante os olhos do ecrã não os consiga já reconhecer e eles tenham parado para sempre de a chamar, ávidos da sua atenção, calando o “mamã”, que agora repetem e lhe ecoa na cabeça até à exaustão. Está exausta. É impossível concentrar-se e é só uma questão de tempo até alguma coisa falhar. “Que tamanho poderá ter o erro?”, inquieta-se.
Ou talvez seja o pai a ir buscar os miúdos à escola, a equilibrar as tarefas do dia e as brincadeiras com as respostas aos emails e os telefonemas, a sentir a reprovação dos que acham que de certeza que não faz nada para conseguir sair assim tão cedo e a inquietação dos que em silêncio se interrogam: “Mas onde estará, afinal, a mãe?”.
A conversa sobre a família e as suas grandes virtudes esbarra num modo de produção que nos quer sempre vigilantes, sempre disponíveis, sempre prontos. No século XIX, as mães operárias punham os filhos a dormir, dando-lhes láudano, uma mistura com ópio, para conseguirem aguentar as noites depois de jornadas de trabalho contínuas, as ceifeiras levavam-nos para o campo em cestas, onde ficavam à mercê dos animais que passavam e do sol que queimava. E tantas outras ficavam simplesmente em casa, trabalhando dia e noite num trabalho que ninguém via, fazendo crescer os filhos até os ver partir.
E agora? Agora, há quem anestesie os filhos com ecrãs para conseguir trabalhar, quem os deixe horas a fio na escola, quem ande num malabarismo constante de atividades, amas e avós. Os salários não esticam, as horas de trabalho multiplicam-se e as contas também e as mães e os pais fazem o que podem. Mas a que custo?
O Público revelou esta semana que há 1806 creches em Portugal que estão abertas das 6h30 da manhã à meia-noite e meia. O número aumentou 42% nos últimos cinco anos e, conta-nos o jornal, a oferta não chega para a procura. Em Braga, uma creche deste tipo teve 400 candidaturas para 90 vagas. A lei diz que “cada criança não deverá frequentar a creche mais do que 11 horas diárias, devendo igualmente usufruir de um período de férias em comum com a família”. Como se isso chegasse. Como se isso fosse aceitável.
Interrogo-me: o que farão estas famílias depois de as crianças fazerem três anos e deixarem de poder estar na creche? Como poderão continuar a conciliar as exigências do trabalho com o cuidado dos filhos?
“Quando consegui esta vaga fiquei mesmo contente porque pensei que não ia conseguir. Muitas vezes recusava trabalho”, diz uma mãe que falou com o Público. O desabafo é recorrente em peças sobre creches. A vaga é diferença entre poder ou não trabalhar, entre ter ou não meios de subsistência. E a maioria das vezes o sujeito destes desabafos é feminino.
Talvez não surpreenda, por isso, que na mesma semana em que o Público contava esta história, o Expresso tenha revelado que em 2024 foram despedidas cinco grávidas por dia em Portugal e que o número está a subir há três anos.
Os filhos são um empecilho. Espera-se das mulheres que engravidem, mas que trabalhem até ao fim da gravidez, que amamentem, mas sem deixar de ser produtivas, que cuidem das crianças enquanto fazem tudo o resto, sem descurar nada. E quem se queixa? Pois que deixe de trabalhar e renuncie ao que sonhou.
Habituem-se as mães e os pais e já agora as crianças. A pátria pede filhos, somos todos a favor da vida, queremos mais natalidade e quem nos pague as pensões, mas (claro) seja português de verdade, daqueles com a genética certa e a melanina na dose correta. E, por isso, ide e multiplicai-vos, mas não deixeis de trabalhar, a menos que vos tenha calhado a fortuna de não precisar de dinheiro. E, nesse caso, ficai em casa, belas, recatadas e do lar, que a pátria vos agradecerá, mesmo que isso vos faça mirrar por dentro. O que é impensável é exigir um sistema justo, com salários dignos e horários regulados. Que o Senhor nos livre dessas utopias. Abençoadas Marias, é vossa toda a glória, mas por agora fiquem-se com a culpa que vos mói quando o relógio bate nas 16h30.