“Nós nascemos com uma deficiência”, disse-lhe o pai. “A deficiência é a nossa cor”. E, por isso, explicou, “temos de trabalhar mais, de nos esforçarmos mais”. Cresceu com essa certeza e com a marca de ser “do bairro”, de vir das barracas. Há demasiadas crianças a aprender cedo essa lição. A de que nascem com um defeito colado à pele, um problema que se manifesta nos lábios grossos, nos narizes achatados, nos cabelos crespos. Olham-nos de lado, as pessoas mudam de passeio quando se aproximam em ruas escuras, os seguranças perseguem-nos instintivamente nas lojas, as mulheres agarram-se às malas quando os veem. São suspeitos.
Demorei demasiado tempo a percebê-lo. Para lá chegar, foram precisos muitos relatos como este sobre o que uma rapariga ouviu do pai, ainda criança. Histórias como esta esbarraram demasiadas vezes na minha incredulidade. Seria possível? Somos cegos ao que não sentimos. Para quem nasce branco, o racismo pode ser invisível. Porque o racismo é uma coisa que se sente na pele. Crava-nos as unhas sem deixar marcas que se possam ver.
A discriminação faz-se num jogo de sombras. As coisas não são evidentes. O mundo tem demasiados matizes de cinzento. E das outras cores todas. “Não existe cor de pele”, corrijo pela enésima vez, enquanto o meu filho mais novo me pede um lápis bege. Uma e outra vez, é preciso corrigir o que nos parece natural, mas não é. Houve um momento em que aprendemos aquilo que repetimos sem pensar.
Somos parte de uma engrenagem. Muitos dos nossos movimentos nasceram muito antes de nós. É preciso um esforço enorme para travar essa máquina e perceber como nos impele a triturar os outros.
Os outros são sempre outros. Nunca somos nós. Nós somos diferentes. E há tantos matizes e tantas maneiras de não as vermos, de não nos vermos.
Encontro um homem vestido com uma djellaba azul clara e um pequeno hijab kippah de crochet branco no topo da cabeça, longas barbas pretas apenas abaixo do queixo e pele escura, que faz questão de me mostrar que fala Português enquanto me conduz num Uber. É simpático, bem-disposto, fala-me das notícias do dia e de quanto o impressionaram as histórias de tumultos e autocarros queimados à volta de Lisboa.
O carro ainda mal entrou na estrada principal que há de levar-me ao meu destino e já o simpático motorista sentencia: “A culpa é dos africanos. Portam-se muito mal”. E, antes que eu tenha tempo de responder, conta-me que mora na Reboleira, onde teve problemas com vizinhos africanos.
Hesito. “O que devo dizer a este homem?”, pergunto-me, enquanto cravo os olhos na sua pele escura. “Já alguma vez foi maltratado por ser muçulmano?”, arrisco. Detém-se, como se não percebesse a pergunta. Não percebe. Insisto.
Aos poucos, vou tentando confrontá-lo com a forma como o vê quem olha para a maneira como está vestido e o entende como uma ameaça. Um outro. Ele que olha para os africanos como “outros”, todos iguais, é cego à ideia de que também ele pode ser um “outro” ameaçador.
Pergunta após pergunta, vejo-o a perceber o que lhe estou a tentar dizer. E é, então, ele que me pergunta por Odair Moniz, pelo homem que morreu baleado pela polícia. A cada resposta, a cada detalhe, faz um esgar, abana a cabeça. “Não é justo”, repete.
O carro para, cheguei ao meu destino. “É uma mulher muito inteligente e o que diz é justo”, diz-me com o sorriso sincero de quem chegou a algum lugar. Comovo-me com a ideia de que o levei até ali, quando é tão difícil sair do lugar de onde estamos.
Às vezes, é difícil ver. É quase sempre difícil ver. Mas a empatia é uma lente de aumentar que ajuda muito. Perceber que o “outro” também podemos ser nós ajuda muito.
Ninguém nasce com uma deficiência. O mundo é que não tem capacidade para nos acolher a todos da mesma maneira. Não há defeitos de pele. Há olhos que não sabem ver. Mas estamos sempre a tempo de aprender.
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