“Daqui a dez anos, terei 30. E só estou a pedir os básicos: um tecto sobre a minha cabeça, ser capaz de comer confortavelmente, sem me preocupar com o dia seguinte. E, se tiver filhos, não quero ter de me preocupar com a alimentação deles ou deixar de comer durante o dia para lhes dar comida”. Jamie-Lea não vive num país em guerra, não está numa parte do mundo em desenvolvimento, não é racializada, não é migrante. Vive em Leigh, no Reino Unido, um antigo bastião industrial, a poucos quilómetros de Manchester.
É a primeira da sua família a chegar à Universidade, mas para conseguir estudar tem de ter três empregos, que lhe ocupam 40 horas por semana. Sonha com a Suécia, um país aonde nunca foi. “Se tiver uma família, não quero que seja neste país, porque não os quero pôr nessa situação”, diz a Helen Pidd, jornalista do The Guardian, a quem conta estar há anos a tentar aprender sueco sozinha. Para o ano, se conseguir juntar dinheiro suficiente, vai finalmente conhecer o país que lhe parece hoje à distância uma promessa de prosperidade, tal como a consegue conceber quem vê como privilégio a garantia da sobrevivência.
Helen Pidd foi a Leigh em busca de perceber como é que o “último tijolo na parede vermelha” que sustinha o Partido Trabalhista iria votar quatro anos depois de ter guinado à direita, dando uma inédita vitória aos conservadores. Mas o que revela esta viagem é muito mais do que um sentido de voto.
Uma e outra vez, a jornalista encontra pessoas que lhe falam da dificuldade em alimentar-se a si e aos seus filhos e de como desejam ter de “deixar de pedir” para sobreviver. Há uma tensão no ar. E Helen Pidd tem dificuldade em encontrar votantes trabalhistas, apesar do desencanto total com o Partido Conservador. É mais fácil tropeçar em apoiantes do partido de extrema-direita Reform UK de Nigel Farage.
Porquê Farage? Porque não?, perguntam-se os eleitores desencantados de tudo, fartos de viver numa incerteza constante, atomizados nas suas indignações, desconfiados daqueles com quem possam vir a ter de ser obrigados a partilhar as suas migalhas.
O discurso é semelhante quando se ouvem as reportagens sobre as eleições francesas. Não é incomum aparecer um eleitor que confessa a impossibilidade de comer carne, a dificuldade de chegar ao fim do mês, a luta para se aquecer.
Há um fosso fundo entre a imagem projetada deste velho continente e o dia a dia concreto de muitos dos seus habitantes. “Nós construímos um jardim. Tudo funciona. É a melhor combinação de liberdade política, prosperidade económica e coesão social que a humanidade foi capaz de construir – as três coisas juntas”, dizia em 2022 o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, num discurso construído para alimentar a ideia de que este “jardim” deve ser protegido da “selva” do resto do mundo, com muros se preciso for.
O que é interessante é perceber o quão longe estão deste idílico jardim muitos daqueles que votam em quem quer construir os muros. A sua escolha não é, contudo, completamente irracional, ela decorre de uma narrativa poderosa que elude do discurso e das práticas a solidariedade e o sentido colectivo.
Os habitantes de Leigh estão a defender o seu jardim, mesmo que ele esteja cheio de pedras e ervas daninhas, porque é tudo o que têm, enquanto sonham com outras paragens mais verdes, sem contar com a cerca que outros por lá poderão construir para os afastar.
Estas classes empobrecidas, precárias, que se tentam agarrar aos escombros do que foram em tempos poderosos estados de bem-estar, são quase invisíveis para todos, menos para os que lhes oferecem no ódio um escape para o ressentimento. A sua luta diária pela sobrevivência não faz parte da imagem que temos dos europeus. A sua experiência está tão longe das bolhas políticas e mediáticas que nos parece grotesca e exagerada. Ela contraria as estatísticas oficiais de progresso, a ideia de mérito, a própria noção que temos daquilo que é a Europa. E, no entanto, eles existem. E, no entanto, eles votam.
Temos estado a ignorá-los. Em breve talvez seja impossível continuar a fazê-lo.
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