Todos os dias o jornal Público chega à biblioteca da escola. Ninguém lhe toca. Até que, um dia, uma professora de Filosofia resolve levá-lo para a sala e pedir aos alunos que o leiam e escolham uma notícia que suscite um debate filosófico. Há um alvoroço. O papel passa pelas mãos da turma de 12.º ano. Há quem note que tem cheiro, quem estranhe que tenha tantas notícias (“até de desporto”, espanta-se um). Entusiasmado, intrigado, um dos rapazes dirige-se à professora. “Stôra, e fazem este jornal todo só para a nossa escola?”. Não se seguiu uma risada, porque ninguém sabia a resposta. A professora hesitou. Talvez o adolescente troçasse dela. Mas não. Era só a candura de quem, pela primeira vez, quase às portas de chegar ao ensino superior descobre o que é um jornal.
Esta história é real. Foi partilhada pela protagonista principal num debate de professores, que se prolongou com queixas sobre miúdos alienados pelos telefones, incapazes de usar as mãos, entorpecidos por um silêncio apático, distraídos de tudo menos da pantalha.
A escola pública foi construída como um espaço de oportunidade e nivelamento social. O lugar aonde se encontravam as ferramentas capazes de fazer ascender os que vêm de baixo. Se existe algum elevador social, ele está na escola pública. O problema é que as escolas não são ilhas. E, em certa medida, deviam ser. Para lá dos seus portões, os alunos deviam encontrar o tempo e o espaço do conhecimento, da reflexão, da curiosidade.
Vítimas de um deslumbramento bacoco com a novidade tecnológica, as escolas não ensinam a ver para lá do óbvio. Instruídas para “capacitar”, reproduzem padrões sociais em vez de os quebrarem, tornam-se produtoras de pequenos burocratas, técnicos desencantados, mão de obra barata e precária. Salvam-se os que encontram em casa outros recursos. Os privilegiados continuarão a sê-lo, navegando acima desta massa indiferenciada de gente “altamente qualificada” que não sabe sequer pensar.
Outra professora de Filosofia partilhou com um amigo outra história. Num dos colégios privados da elite lisboeta, os alunos (também no 12.º ano) debatiam afincadamente a necessidade de educação. Dizia um, indignado, não compreender por que teriam os pobres de receber educação paga quando a maioria vai acabar em trabalhos pouco qualificados e que são necessários. O despudor deste raciocínio choca e revela uma ignorância mais grave e profunda do que a do que não sabe o que é um jornal.
Entre estas duas histórias, há um fosso. Um buraco fundo que separa aquele que se prepara para continuar em baixo do que sente como direito natural continuar em cima. A naturalização da desigualdade é uma das marcas mais assustadoras destes novos tempos, de indivíduos sozinhos, encorajados a verem-se como empreendedores de si próprios, ensinados a ver na pobreza uma falha pessoal, crentes da religião do mérito, indiferentes ao sofrimento do outro.
Curiosamente, uns e outros votam cada vez mais na extrema-direita. Os de baixo movidos pela raiva do que não conseguem, os de cima para manter o que já têm. Os de baixo contra os bodes expiatórios estrangeiros, que vêm como ameaça, os de cima para que os imigrantes ilegais, que vêm como oportunidade, continuem a ser explorados. Os de baixo contra os de cima. Os de cima contra os de baixo. Todos juntos para garantir que perdem os mesmos de sempre, ganham os do costume. Até quando?
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