Tudo é política
"Ainda acreditas no Pai Natal?"
É capaz de ser por tudo isto que embirro tanto com quem atira, com altivez e desdém, um “ainda acreditas no Pai Natal?”, quando a intenção é esmagar a suposta inocência do interlocutor. O cinismo é uma coisa triste
A fuga dos imigrantes e como nos preparamos para empobrecer
Os imigrantes vêm quando há trabalho e boas condições económicas e vão-se embora quando a economia cai. Ou alguém se lembra de a “imigração descontrolada” ser um grande tema nos anos negros
Testosterona, energia feminina e outras tretas
As mulheres gastam em média 262 minutos do seu dia em tarefas não remuneradas (leia-se cuidar da casa e dos filhos), enquanto os homens só dedicam 141 minutos diários a esses trabalhos
Eles têm medo de que não tenhamos medo
Shamim Hussein deve ter sentido medo quando foi recuperar a bicicleta que usava para levar comida, na Costa da Caparica, e foi esfaqueado. E é medo que seguramente sentirá a sua mulher que fica agora sozinha, num país estranho, que lhe matou o marido e a deixa com um bebé de 2 anos
Odair e Bruno: Uma dança antiga que temos de parar
O que aconteceu naquela noite começou há centenas de anos. Naquela noite, os homens chamavam-se Bruno e Odair, mas já tiveram muitos nomes. E o que devia acontecer era percebermos isso, para encontrarmos uma forma de encerrar este capítulo
Somos poucos, mas somos muitos
Uma sociedade sem jornalismo deixará de ter voz. Poderá até gritar na cacofonia das redes sociais e da indignação instantânea, mas não conseguirá ouvir-se nada no meio do ruído
A desigualdade explicada às crianças
“As pessoas que vêm de África cozinham melhor do que as outras?”, perguntou-me certo dia o meu filho mais novo enquanto deambulávamos pela cidade. Franzi o rosto. Não percebia pergunta. “É porque são sempre as pessoas mais escuras que trabalham nas cozinhas”
Armados aos cucos
Formigas de duas espécies diferentes coabitam no mesmo frasco, de forma pacífica… até alguém agitar o frasco. A partir daí, elas começam numa luta desenfreada, matando-se umas às outras. Enquanto alguns pobres caçam imigrantes pobres, uma elite poderosa diverte-se com o frasco na mão
"Eu não me meto em política"
Cresci a ouvir a minha avó Emília estremecer quando eu subia o tom para falar de política com o meu avô Alberto. “À mesa, não se fala de política.” E não foram poucas as vezes em que ouvi alguém dizer, para estancar uma conversa incómoda ou inconveniente: “A minha política é o trabalho”
Temos o Interior em cinza
Ninguém sabe como preencher a papelada que é preciso para receber os dinheiros que virão de Lisboa. Na dúvida, pede-se e recebe-se o que vier. Talvez venha a mais para um telhado, a menos para um olival. Ninguém sabe. E talvez o dinheiro seja mesmo verde. Se vier, quando vier, para quem vier
O País visto por um canudo
As universidades transformaram-se em fábricas de mentiras. O espírito crítico é visto com a desconfiança que causa a subversão a quem está mais interessado em métricas de empregabilidade
Lisboa, temos de ter uma conversa
Há uma tensão no ar. A mesma que me fez desistir de andar no elétrico 28, depois de muitos dias a irritar-me com os turistas que saiam nos Prazeres apenas para voltar a entrar, convencidos de que o que para mim era um transporte era, afinal, uma espécie de carrossel. Era uma luta desigual. Nunca mais andei no 28.
O tempo da Maria Cachucha não é para nós
Era muito fácil, sem o saber, dizer que a fotografia tinha sido tirada num qualquer país muçulmano. Mas foi assim que a democracia encontrou as mulheres em Portugal. Tapadas, caladas, sem direitos, submissas aos maridos ou aos pais
A capa é verde, mesmo que digam que é vermelha. A crónica de Margarida Davim, agora premiada
O meu trabalho é escrever que a capa de cartolina é verde. Não porque eu digo que é verde, mas porque o método jornalístico que sigo permite concluir que é verde. Não sei quantas pessoas acreditam ainda na importância de ter um jornalista a escrever que a capa de cartolina é verde. Não sei quantas estarão disponíveis para aceitar que é verde depois de ter sido induzidas a acreditar que era vermelha. Mas foi para isto que escolhi esta profissão
Ao trabalho! Uma enxada para cada nacionalista
Eduardo Lourenço dizia que “não trabalhar foi sempre, em Portugal, sinal de nobreza”, o trabalho, dizia, era “para o preto”. Por muito que os portugueses se tenham matado sempre a trabalhar, as elites nacionais fugiam como o Diabo da cruz da ética protestante do trabalho
Isto não é só em Portugal
Há sempre alguém mais a sul do que nós, alguém mais pobre que sonha com o norte. É tudo uma questão de perspetiva. Os de cima, temendo os de baixo, os de baixo querendo subir, numa escala que se estende pelo mundo
Que a força esteja connosco
A ideia de que se pode fugir à realidade é uma ilusão. E uma ilusão perigosa, ainda por cima. Por muito que entenda a vontade de experimentar uma anestesiante alienação, o mundo é o que é e, mais cedo ou mais tarde, perceberemos que estamos dentro dele
O que nós mudámos em 58 anos
“Se estás tão preocupada, porque é que não recebes estas famílias em tua casa?” É a pergunta de quem não se sente parte de uma comunidade, de quem não percebe nada do que são direitos e construção coletiva de uma sociedade
A fronteira está no bolso
“O meu pai emigrou para os Estados Unidos com 14 anos, vindo do Chipre. Os meus avós foram depois. Se os meus avós fossem vivos, nunca iam acreditar que eu tinha vindo para a Europa para ter uma vida melhor”, conta-me a Maria
Eu vi uma racista
A rapariga estaca, abre os olhos, mas ainda sorri. “Eu falo português. Em que posso ajudar?” A mulher não desarma. “Alguém que fale português corretamente, não essa coisa que está a falar.” A trabalhadora tenta insistir, sempre com simpatia. A outra repete que não gosta daquele português
Estou em luta. Crónica de Margarida Davim
“O jornalista não é notícia, a não ser quando morre”, dizem-nos nas aulas. E nós lá vamos morrendo, devagarinho, sem ser notícia. Sempre prontos para denunciar as injustiças que os outros sofrem, omitindo as nossas