Tudo é política
A declaração de amor que não devia ter escrito
As paixões são incompreensíveis e ridículas. E, por isso, estas linhas não dizem nada a quem não está apaixonado por fazer jornalismo. Soam a uma excentricidade fora de moda, uma arrogância fora de tempo, uma irracionalidade fora de pé. E é mesmo assim. É isso tudo. E é por isso que talvez não devesse tornar pública esta declaração de amor. Os amores segredam-se. Não se gritam
O caminho para sair do medo
E é por aí que temos de ir, sabendo que a cada onda de medo e opressão que se aproxima, cabe-nos dar o peito e mostrar o caminho, porque ele existe, mas apenas se acreditarmos nele. Quando o começarmos a imaginar, ele começará a aparecer. E, então, estas frases de desalento parecerão apenas a memória de umas trevas que já deixámos (outra vez) para trás
Um defeito de pele que está nos nossos olhos
Somos parte de uma engrenagem. Muitos dos nossos movimentos nasceram muito antes de nós. É preciso um esforço enorme para travar essa máquina e perceber como nos impele a triturar os outros
A capa é verde, mesmo que digam que é vermelha. Opinião de Margarida Davim
O meu trabalho é escrever que a capa de cartolina é verde. Não porque eu digo que é verde, mas porque o método jornalístico que sigo permite concluir que é verde. Não sei quantas pessoas acreditam ainda na importância de ter um jornalista a escrever que a capa de cartolina é verde. Não sei quantas estarão disponíveis para aceitar que é verde depois de ter sido induzidas a acreditar que era vermelha. Mas foi para isto que escolhi esta profissão
"Exterminem todas as bestas". As crianças também
A política convive com um certo grau de hipocrisia a que em jargão diplomático se chama realpolitik, mas o sistema em que vivemos não sobreviverá à escalada da desumanização, à destruição da mais básica decência, à aniquilação de direitos que consagrámos na lei depois dos horrores do Holocausto nazi
Mas, afinal, quem é que são as "pessoas"?
É que as “pessoas” não são o povo. O povo desapareceu dos discursos. Era muito coletivo e abstrato. E tinha o cheiro a bafio das coisas que já não se usam nem parecem modernas. O povo cheirava a povo. As “pessoas” são assépticas, modernas, prontas a viver num mundo novo
Os suspeitos do costume
Instilar ódio aos imigrantes é tão fácil como fazer arder um eucaliptal depois de o regar com gasolina. O combustível está lá quando o salário não chega para as contas, quando não há vaga na creche, quando a consulta tarda no hospital, quando a renda da casa sobe. Isso é que o faz arder. Mas o que arde está plantado bem fundo em nós: a ideia de que as pessoas não são todas iguais e que a humanidade se mede em tons de pele e, já agora, em euros
Estamos a perder amigos e a razão é política
Quando fizermos uma equação que traduza a dificuldade de ter e manter amigos devemos juntar às horas de trabalho infindáveis e desreguladas, às exigências da família, aos custos da vida social, à emigração forçada de quem procura uma vida melhor, o facto de termos casas incomportavelmente caras e serviços públicos degradados
O lugar do juízo (ou da falta dele)
Haverá poucas coisas que mais dividam os seres humanos do primeiro mundo do que a forma como educam os filhos. Começa na fraturante discussão sobre métodos de introdução alimentar e vai por aí adiante, com batalhas campais sobre quais os castigos adequados (se é que há algum), os decibéis que as professoras podem atingir sem serem acusadas de maus-tratos ou a forma como ensinamos os limites do corpo e o respeito pelo outro aos nossos filhos. Sim, até a decência pode ser problemática.
Dar a cara por todas
Gisèle está a mostrar-nos um caminho. Está a ensinar-nos que é o criminoso aquele que tem de se esconder. Fá-lo com um esforço indizível, que talvez não chegue sequer para fazer-nos avançar mais do que uns centímetros nesta longa caminhada. Mas vamos continuar a andar. Por muito que nos travem, não vamos parar
Meninos "fechados na rua"
Depois de um verão à procura de atividades para crianças e de perceber que muitas (sobretudo em agosto) têm valores absolutamente incomportáveis, pareceu-me que talvez a história deste menino não seja só de abandono e negligência, mas também de desespero e falta de apoio
E que tal pôr rodas aos professores?
Os professores já estão habituados a acabar agosto com o coração nas mãos e as malas à porta, numa migração interna que em Portugal é capaz de só ter comparação com aquela que, até aos anos 70, levava milhares de camponeses rumarem da Beira Alta para o Alentejo para ceifar. Eram conhecidos como os “ratinhos”, porque, diziam os do sul, iam para lá “roer o nosso pão”. Os professores de agora parecem, porém, condenados a comer apenas o pão que o diabo amassou.
“Nós não somos iguais e nunca seremos”
A verdade é que o sentimento de superioridade natural que ostenta usa-se muito. Usa-se cada vez mais. Vem disfarçado de “meritocracia” (que o que não se usa tanto é a “aristocracia”). Mas essa é só mais uma forma de distinguir entre os que à nascença têm quase tudo aquilo de que precisam para vingar na vida e os que só por um acaso da sorte estatisticamente muito irrelevante lá chegarão.
Uma operação ao cérebro dos nossos filhos
Parecem fechados para dentro, mas estão de portas escancaradas para o mundo. Os desconhecidos entram-lhes no quarto a meio da noite. As crianças a quem costumávamos ensinar a não aceitar doces de estranhos passam agora horas a falar com eles, confessando-lhes os segredos, aprendendo-lhes os valores, seguindo-lhes os exemplos nos vídeos de Youtube que parecem tão inofensivos, mas que não nos damos ao trabalho de ver, nos posts de Instagram, que lhes moldam os sonhos, nas dancinhas do Tik Tok, que os absorvem até à alienação. Não admira que deixemos de reconhecer os filhos que, no fundo, não criámos
A vida sobre o arame da especulação
Num mundo de especulação desenfreada, viver torna-se num exercício de equilibrismo. O pedaço de terra que temos debaixo dos pés pode ser difícil de manter se a cobiça dos muito ricos o tiver na mira.
A banalização do mal e o fim da política
A castração, a pena de morte, a prisão política. O desejo de aniquilação do outro, motivado por um suposto sentido de justiça. A forma como a racionalidade desapareceu de um discurso público inflamado por uma indignação contínua e estéril, está a ter efeitos profundos
E o povo, pá?
A erosão dos direitos causa uma sensação de desorientação que nos impele para narrativas de ódio, para soluções populistas, para a contestação ao sistema, mesmo que nos seja óbvio o quão inconsequente é essa contestação. Deitamos mão ao instrumento que nos disseram ser uma arma: o voto.
A orelha de Trump, o nariz da Cleópatra e uma bola de ténis
Se não soubermos perceber os mecanismos que fazem de Trump um símbolo, não conseguiremos nunca combatê-lo. Os homens providenciais não existem. São só uma forma de entendermos o mundo. Quando a morte os leva, o que lhes deu poder encontrará outras formas de persistir, se a semente das suas ideias conseguir encontrar um solo fértil onde crescer
"É um país estranho, a França". Será mesmo?
Este retrato esbarra na caricatura dos franceses mimados agarrados a direitos incomportáveis para um país que já supera os 5% do seu PIB em défice. É um retrato feito de desigualdades profundas que as políticas das últimas décadas só agravaram. E é aí que reside a chave do imbróglio político francês, que é o espelho do que se passa um pouco por todo este velho continente
Há fome no jardim europeu e nós estamos a ignorá-la
A sua luta diária pela sobrevivência não faz parte da imagem que temos dos europeus. A sua experiência está tão longe das bolhas políticas e mediáticas que nos parece grotesca e exagerada. Ela contraria as estatísticas oficiais de progresso, a ideia de mérito, a própria noção que temos daquilo que é a Europa. E, no entanto, eles existem. E, no entanto, eles votam.
Os de baixo contra os de cima, os de cima contra os de baixo
Vítimas de um deslumbramento bacoco com a novidade tecnológica, as escolas não ensinam a ver para lá do óbvio. Instruídas para “capacitar”, reproduzem padrões sociais em vez de os quebrarem, tornam-se produtoras de pequenos burocratas, técnicos desencantados, mão de obra barata e precária. Salvam-se os que encontram em casa outros recursos.