Estamos todos numa praça, no fim de uma manifestação. Aqui e ali, vão aparecendo amigos e conhecidos, com quem se trocam acenos e abraços. A certa altura, um deles comenta. “Somos sempre os mesmos.” Olho-o, concordando. “Sinto que conheço toda a gente que está aqui”, respondo. “Mas ao menos saímos daqui satisfeitos”, contrapõe, com uma gargalhada. A luta política encontrou duas fórmulas: a festa ou o sacrifício. Quando desfilamos numa avenida, cheia de amigos que pensam como nós, há alegria, palavras cantadas, cartazes cheios de ironia, sorrisos cúmplices e uma sensação de se ter cumprido um dever, mesmo que no fundo saibamos que quase nunca nada muda a seguir. Mas também há um sofrimento autoinfligido quando a luta se faz pela greve. Esse sacrifício é evidente quando se fala de uma greve de fome ou dos cordões humanos que resistem à violência, mas pensa-se pouco sobre como cada dia sem trabalhar é um dia de salário perdido.
Essa luta só terá hipóteses de vencer quando se fizer fora das paredes das redações. Quando lá fora houver finalmente uma maioria que entenda porque é que o jornalismo nunca foi tão necessário e como poderia ser tão melhor do que é
“Vai chegar tarde ao trabalho hoje?”, pergunta um jornalista quando há greves nos transportes. “Ficou sem a consulta?”, questiona quando a paralisação é na saúde. “E tem onde deixar as crianças?”, interroga-se quando são os professores que estão em luta. As perguntas desviam a atenção do motor do descontentamento que fez a greve, mas acabam por ser um reflexo do desconforto que é suposto as greves causarem. Sim, porque se a greve não tiver esse efeito, serão só dias de salário perdido e, com isso, quem os paga pode bem.
Estive poucas vezes de greve e não foi por me faltarem os motivos para as fazer. Os jornalistas são quase sempre mal pagos e precários, mas habituaram-se a envergonhar-se das suas lutas. “O jornalista não é notícia, a não ser quando morre”, dizem-nos nas aulas. E nós lá vamos morrendo, devagarinho, sem ser notícia. Sempre prontos para denunciar as injustiças que os outros sofrem, omitindo as nossas. Sempre prontos para relatar as vidas difíceis dos outros, escondendo as nossas.
Mas não é só o pudor deontológico que nos trava as lutas. A notícia morde-nos a pele, precisamos de a dar. As páginas que não escrevemos ficam-nos a arder por dentro. É como se nos faltasse o ar quando, a meio de uma greve, percebemos que há uma história que fica por contar. Como não sei ser outra coisa que não jornalista, não faço ideia se estas aflições atacam professores, médicos ou maquinistas da CP. Admito que sim. Admito que, numa sociedade em que aprendemos a definirmo-nos pelo que fazemos, seja realmente assustadora a ideia de deixarmos de o fazer.
“E tu és o quê?” Eu sou jornalista. E estou em luta. Escrevo estas palavras, não para furar uma greve, que é mais do que justa, mas porque acredito (com a força com que nos convencemos a nós próprios de alguma coisa) que o teclado é a minha arma. Disparo frases enquanto puder, porque o silêncio será a maior derrota.
Que luta é a minha? A de conseguir ter condições laborais dignas para exercer a minha profissão, a começar, claro, pelo mais básico: um salário ao fim do mês. Mas é também a luta de quem acha que o jornalismo é importante para furar as bolhas dos algoritmos que nos isolam uns dos outros, para encontrar espaços comuns onde as diferenças se resolvam pelo diálogo e pela razão e não pela violência, para denunciar injustiças, para escrutinar os poderes, para nos fazer pensar e para nos emocionar.
O jornalismo não se tornará obsoleto enquanto houver quem acredite na importância de um chão comum, que não seja feito de desistência e indiferença, mas que seja o terreiro de uma disputa de ideias, em cima do qual poderão nascer dias melhores. Podem vir mostrar-me ficheiros de Excel, podem vir tentar explicar-me como o mercado condenou o jornalismo, que eu hei de responder com os desmandos de gestão que vi em quatro mãos-cheias que já levo de redações e com a certeza de que a, certa altura, vamos todos perceber que não podemos continuar a viver só aquilo que os mercados desejam.
Essa é a minha luta e é a luta de muitos camaradas (aprende-se no primeiro dia de redação que “colegas” são as senhoras de má vida, “camaradas” é o que somos). Mas essa luta só terá hipóteses de vencer quando se fizer fora das paredes das redações. Quando lá fora houver finalmente uma maioria que entenda porque é que o jornalismo nunca foi tão necessário e como poderia ser tão melhor do que é.
Há uns tempos, uma camarada de outro jornal contou-me uma história interessante. Estava ela, num grupo de amigos menos politizados, queixando-se de como a maior parte das manifestações não dava em nada. Eles, que raras vezes tinham ido a manifestações, contrapuseram com a sua experiência. Sempre que decidiram sair à rua, a luta alcançou vitórias. Um dos exemplos dados era o da TSU, mas tinham outros. Ou seja, depois de muitos protestos feitos pelos tais mesmos de sempre, a dada altura a luta extravasou esses limites e conquistou quem à partida se vê como menos politizado.
Há os que vão levando o barco e os que, saltando lá para dentro já no fim da viagem, chegam ao destino, parecendo-lhes que o percurso foi fácil. O importante, porém, é que todos lá cheguem. Por agora, só quero manter o barco da VISÃO à tona, esperando que ele encontre um bom porto.