1. Aquilo que o próprio José Sócrates já admitiu, no âmbito do Processo Marquês, era o suficiente, há mais de dois anos, para desencadear uma demarcação clara do PS. Aceitemos que o dinheiro não era dele, mas de Carlos Santos Silva – e como conseguiu o amigo reunir tal fortuna?… – e que as dezenas de milhares de euros que gastava e outros milhares que re-emprestava ou com que financiava outras pessoas eram fruto de empréstimos por sua vez contraídos – em espécie(!) – junto de Santos Silva: o simples facto de isso se ter passado, um político a viver de empréstimos milionários de um empresário com negócios com o Estado, e ocultá-lo, pode não ser crime mas é politicamente inaceitável. O suficiente para que, num país informado, Sócrates nunca mais tivesse hipótese de continuar uma carreira política – quanto mais cultivar a veleidade de uma candidatura presidencial. Mais, perante os factos admitidos pelo próprio, qualquer partido preocupado com a reconciliação entre os cidadãos e a política lhe teria movido um processo disciplinar conducente à expulsão. O que evitaria que Sócrates saísse por cima, pelo seu pé, com uma certa e inacreditável aura de “dignidade”. Para cúmulo, o que se passou na semana passada deu origem ao inimaginável: elogios a Sócrates, nas redes sociais, vindos dos talibãs de uma certa direita trauliteira que desde o primeiro momento o condenara e que aqui vê uma hipótese de embaraço para António Costa…
A ficha não caíu, de repente, nas cabeças pensantes do Largo do Rato. Desde o início que a feliz expressão usada por Sócrates – “embaraço mútuo” – se sentia a pairar. E que comprometia desde os seus indefectíveis, para quem Sócrates é uma espécie de guru e o socratismo uma religião – temos de usar estas comparações, pela falta de lógica racional neste verdadeiro culto, que vai contra toda a evidência e toda a decência política… – aos que, embora tenham desconfiado de qualquer coisa, sempre estiveram até ao pescoço envolvidos na governação de Sócrates. Como ministros, deputados, dirigentes ou simples apoiantes de base. E esse é o regime. E esse é, também, parte do atual governo.
Ora, não é por terem tido um compromisso político com a governação socialista entre 2005 e 2011 que as pessoas se devem envergonhar. Em muitos casos, consoante as áreas e as medidas, deviam, até, orgulhar-se. O erro do PS foi deixar que a mancha das suspeitas criminais sobre Sócrates e, depois, a acusação formal, se confudissem com a própria governação do PS nesses anos. Ora, essa é a estratégia do acusado, mas é uma extrapolação política injusta que o PS podia ter evitado, se os seus dirigentes não se sentissem politicamente comprometidos com o indivíduo: um ex-líder que se tornou um ativo tóxico. O “roadshow do silêncio” cultivado pelo PS desde aquela já longínqua noite de 22 de novembro de 2014 foi agora interrompido pelo estrépito do caso de Manuel Pinho, que ameaçava contaminar qualquer tipo de governo liderado pelo PS – incluindo o atual: “Afinal, pelo que se vê são todos Sócrates”.
É por isso que este caso pode ser, também, uma lição para o comportamento futuro dos partidos – numa lógica que também tem atualidade nas moradas de residência declaradas pelos deputados: nem tudo o que é legal é politicamente aceitável, e o cumprimento da lei não previne, necessariamente, a falha no plano ético. A redutora frase “à Justiça o que é da Justiça e à política o que é da política” fica desatualizada a partir do momento em que Sócrates admite a natureza das suas relações financeiras com Carlos Santos Silva, e que nada tem a ver com a Justiça. Essa distinção entre ética e legalismo nunca a fez o PS que, até ao caso Pinho, teimou em colocar tudo no mesmo saco da Justiça. E continua a teimar no mesmo: ao dizerem que Sócrates envergonha o partido “se se confirmarem” as acusações, continuam a empurrar para a Justiça o julgamento de atos já confirmados e admitidos pelo próprio – e que deviam envergonhar o PS, sem aquela ressalva.
2. Em entrevista recente à VISÃO, António Costa, interrogado sobre uma eventual demissão, caso as tragédias dos incêndios se repetissem este ano, respondeu, mais coisa menos coisa, que os problemas não se resolvem com demissões mas com ações. Esta semana, na entrevista ao Público, o Presidente Marcelo disse que, no caso de repetição da tragédia, não demitirá o Governo, mas que ele próprio, Marcelo, não se recandidatará a Belém. De uma penada, o Presidente admite, embora implicitamente, pela primeira vez, a recandidatura: isto é, quer dizer que, se até lá não houver tragédias com incêndios, se recandidatará. Mas, mais do que isso, coloca António Costa sob pressão: se ele, Presidente da República, sem responsabilidades executivas na prevenção e no combate aos incêndios, retira consequências políticas, que caminho restará ao primeiro-ministro, o principal responsável pela segurança interna?…
Isto acontece na mesma semana em que se demite o comandante da Proteção Civil e uma semana depois da polémica do pedido de consultoria a especialistas europeus, neste caso, espanhóis, para aconselhamento relativamente às medidas de prevenção em curso, este ano. Pobres e mal agradecidos, quando se esperava que apreciassem a ajuda, responsáveis da Proteção Civil (ANPC) e bombeiros queixaram-se de não terem sido ouvidos. E a ANPC acusou mesmo a Estrutura de Missão para a Gestão Intetrada de Fogos Rurais, liderada pelo perito na área Tiago Oliveira, que foi buscar os espanhóis, de passar um “atestado de incompetência” à Proteção Civil. Mas, depois do que aconteceu no ano passado, era preciso um atestado?…