1.
É difícil tomar uma posição face à aspiração de grande parte dos catalães – talvez, metade da população – de se tornarem independentes de Espanha, ou, talvez mais exatamente, de Castela. Analisando racionalmente a situação, é inegável que a fragmentação nacionalista da Europa só a enfraquece – e, não por acaso, esta semana, surgiram notícias da existência de uma mão russa por detrás do arbusto (outra vez!), no conflito que opõe Barcelona a Madrid. Além do mais, desagrada-me o tipo de motivação, egoísta, falaciosa e errónea que está por detrás do independentismo. Não para afirmar uma identidade, uma cultura, uma língua – tudo isso já está garantido no estatuto autonómico – mas porque, pretensamente, a Catalunha estaria a sustentar o resto da Espanha, como se a própria Catalunha não dependesse do resto da Espanha, como a fuga de empresas eloquentemente demonstra. Clamar por “liberdade” com base neste tipo de retórica é ridículo. Por isso, depois de muito pensar, deixem-me dizer: sou contra! Mas isso não me impede de fazer, por uns momentos, o papel do advogado do diabo. Porque há argumentos que me deixam perplexo, sobretudo os “legalistas” – e são esses que, obtendo o efeito contrário do pretendido, em nada favorecem a continuação da Catalunha no todo da Grande Espanha. O primeiro é o do cumprimento da lei e da Constituição. O segundo é o do primado da competência judicial nos processos movidos contra os dirigentes independentistas. E o terceiro é o da suposta “fuga” de Carles Puigdemont para Bruxelas.
Ora vejamos: do ponto de vista de quem aspira a uma independência, a Constituição da potência ocupante não vigora no território do “aspirante”. Aliás, é por colocar em causa, entre outros elementos da soberania do Estado espanhol, a própria Constituição, que esta rebeldia surge. Quando, em 1385, D. João I e Nuno Álvares Pereira garantiram a independência de Portugal, fizeram-no contra a lei (portuguesa!), os costumes, os legalistas, o Direito da época e as legítimas aspirações de D. Juan de Castela, que, transpostas para os dias de hoje, se poderiam chamar “constitucionais”… Do mesmo ponto de vista, o poder judicial da potência ocupante não tem legitimidade para julgar cidadãos do território ocupado. Eu sei: as palavras parecem desfasadas e o retrato parece forçado: Madrid não colocou tropas na rua, a população não está a ser reprimida e a Catalunha não foi invadida, apenas faz parte, naturalmente, e há séculos, da unidade territorial espanhola. Mais, a população manifesta-se livremente, a favor e contra a independência. Mas o estrito argumento legalista parece-me insuficiente, a solução mais fácil, própria de quem lava as mãos, para que tudo fique na mesma. Até porque é inerente às leis poderem mudar. Foi, por isso, um erro colossal o governo central espanhol ter proibido o referendo, que podia ter decorrido e não ter produzido quaisquer efeitos, bastando, para isso, que Madrid o declarasse irrelevante. Para os independentistas – e eles são apoiados por milhões de eleitores catalães – é isso mesmo que a Espanha é: um ocupante.
Sobre a fuga de Puigdemont, perguntar-se-á: será que Álvaro Cunhal e Mário Soares, quando se exilaram, foi no sentido de fugirem cobardemente do País? Já sei qual é o argumento: as situações não são comparáveis, porque Portugal vivia sob uma ditadura e a Espanha de hoje é uma democracia e um Estado de Direito. Sê-lo-á, de facto. Mas não para os independentistas catalães que, aliás, com democracia ou sem ela, arriscam o mesmo castigo: 30 anos de prisão.
A solução para a Catalunha, mas, sobretudo, para Espanha, não é nem militar, nem policial, nem judicial. É simplesmente política. E essa é a única saída para prevenir os efeitos perversos do nacionalismo.
2.
Esta semana, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, fez um ultimato ao ministro da Saúde. Ou o governante demitia o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Jorge Simões, ou os médicos retiravam-se do organismo (no momento em que escrevo, ainda não se sabe o que se vai passar). No fundo, como explicou o bastonário, ou o Governo quer continuar a discutir os problemas da Saúde e respetivas políticas com a participação dos médicos, ou sem ela. Ao mesmo tempo, reafirmava o empenho dos clínicos na luta por uma “melhor qualidade nos cuidados de Saúde” e aplaudia a greve ocorrida esta semana.
O “pecado” de Jorge Simões foi o de dizer, numa entrevista, que, se calhar, não era preciso aumentar o número de médicos no Serviço Nacional de Saúde mas, em alternativa, aumentar o número de enfermeiros e outros profissionais de Saúde. E acrescentava que há diversos atos clínicos que podem ser praticados por outros técnicos da Saúde, que não os médicos. Em vez de discutir esta ideia e elencar “quais”, a Ordem reagiu como as defesas de um organismo humano reagem contra um elemento estranho: com uma alergia. A heresia de sugerir que o sistema não deve estar aberto à entrada ilimitada de médicos, ou de que, para dar um exemplo, a prescrição de uma receita para corrigir a miopia pode ser assinada por um optometrista e não, necessariamente, por um oftalmologista, é insuportável. Já do ponto de vista do utente, é difícil de perceber como é que uma greve, que pode transferir a sua cirurgia para as calendas, piorando a sua qualidade de vida, contribui para uma “melhoria da qualidade nos cuidados de saúde”…
É evidente que, se uma greve não tivesse de ter consequências desagradáveis, não valia a pena fazê-la. Aceitemos que os efeitos colaterais sentidos pelos doentes podem ser inflingidos em nome de um bem maior, no futuro. E que eles, graças a esta luta dos médicos, verão, no futuro, ser melhorado o serviço. Mas será que o serviço só melhora, presume-se, com a continuação da abertura do SNS a todos os médicos que se formam no País, fazendo daquela profissão a única com emprego garantido no Estado? Ou os recursos podem ser utilizados noutras direções, nomeadamente, envolvendo outros agentes de saúde e racionalizando os recursos humanos? Eu não sei, e pode ser que não – mas gostava que os médicos saíssem da sua “quinta” e aceitassem discutir as premissas das declarações do presidente do Conselho Nacional, em vez de se colocarem na posição do “não, porque não!”
O que é bastante claro é que exigir ao ministro que demita o senhor é melhor garantia de o manter no cargo: nenhum político pode, de forma nenhuma, ceder a este tipo de chantagem, operando saneamentos a pedido, sob pena de dar um sinal de fraqueza face ao poder de uma corporação. Seja ela qual for.