“Em Portugal há Coca-Cola?”. Até há poucos anos, esta era a primeira pergunta dos agentes de viagens italianos a uma congénere portuguesa a trabalhar com o mercado transalpino. Isto, segundo o testemunho de uma empresária do setor. Se a pergunta fosse feita antes do 25 de abril, a resposta seria: «Não. A Coca-Cola está proibida em Portugal». Ou seja, a conquista mais perdurável de abril, e a única que não sofreu qualquer reversão neoliberal, é a introdução do refrigerante americano nos hábitos de consumo dos portugueses. Viva!
O anti-americanismo de Salazar só encontra paralelo no anti-americanismo da extrema-esquerda portuguesa. Ou da “esquerda radical”, como a direita moderna prefere chamar-lhe. Mas não é por anti-americanismo que o orçamento para 2017 prevê a taxação dos refrigerantes (e dos donuts, ninguém fala?!). Mas só de alguns, numa lei que parece desenhada para a Coca-Cola. Em cada latinha, o consumidor consome perto de cinco pacotes de açúcar. São 108 gramas por litro. Mas se Salazar barrava a Coca-Cola para proteger a indústria nacional de refrigerantes – e os mais antigos, como eu, lembram-se da Superfresco, da Cirel, da BB, da Spur Cola Canada Dry, do Pirolito Bilas e de outros, todos desaparecidos, findo o “embargo fascista” – este governo ataca os refrigerantes importados (e há outros?) porque está apertado de trocos. Não sei o que é pior.
À partida, sou completamente a favor. É que, quando vamos ao supermercado. e observamos o cabaz de compras de famílias que, obviamente, tal como o Governo, até estão apertadas de trocos, vemos que não dispensam as enormes garrafas de dois litros de refrigerantes. É isso que bebem, ou dão às suas crianças, às refeições. Tudo bem, encantados da vida: ninguém tem nada com isso. Ninguém, vírgula. Todos pagamos a fatura no Orçamento do Serviço Nacional de Saúde. Porque é que não bebem água (as crianças) e água ou vinho os adultos? Nem precisam de gastar muito dinheiro: o País dispõe de um rede de água potável que sai das torneiras dos nossos lares e, para dar um exemplo, a água de Lisboa é das melhores da Europa (e de muito superior qualqidade a qualquer água engarrafada, nacional ou estrangeira, disponíveis no mercado). A consequência do vício do refrigerante à refeição é, entre outros males, obesidade e diabetes infantil.
É por isso que me irrita um pouco que os grandes arautos da “liberdade de costumes” se queixem contra o “policiamento” do Estado, nos hábitos de consumo dos cidadãos. Primeiro, o tabaco, depois o álcool, o açúcar ou a gordura. Ora, se o SNS é tendencialmente gratuito (não obstante as taxas moderadoras), é justo que o Estado, que é quem paga a conta, tenha uma palavra a dizer na prevenção. Completamente a favor, portanto, da “fat tax”.
Mas isto é um “fait divers”, no meio da montanha russa do sistema fiscal português. E, agora, o reverso da medalha: Portugal não consegue ser competitivo, nem consegue crescer economicamente, nem atrair investimento, enquanto continuar com um sistema fiscal tão instável como as alterações climáticas. O imposto de hoje pode já não existir amanhã. E o que nunca imaginaríamos que pagasse imposto, pode passar a ser taxado para a semana. Desse ponto de vista, este Governo parece ser o mais imprevisível de todos. Numa completa navegação à vista, porque está à rasca, para “repor rendimentos”, o que quer que isso seja perante o aumento brutal dos impostos indiretos. E essa é uma das razões pelas quais António Costa “não sabe” ou “não quer”, responder às perguntas de Passos Coelho, no Parlamento. E já agora: se era para deixar os transportes públicos de Lisboa como hoje estão, se era para defender o serviço público de transportes que se reverteram privatizações, bem podem limpar as mãos à parede. Eu digo-vos porque é que as privatizações dos transportes foram revertidas: porque o PCP não abre mão da posição de força sindical que permita parar as cidades. E digo-vos porque é que o serviço se degradou tanto: porque entre manter padrões de qualidade e satisfazer as reivindicações laborais, opta-se pela segunda hipótese. O orçamento não dá para tudo.
PS – Este vosso amigo vê a Literatura, não do ponto de vista do crítico, mas do consumidor (um bocadinho compulsivo, até). Portanto, sem querer “armar ao pingarelho” tenho a legitimidade de leitor, para comentar o Nobel, até porque também sou um consumidor de música, e admirador de Bob Dylan. Ora, sabemos que algo está errado quando são os críticos musicais, e não os literários, os mais solicitados para comentar o Nobel de… Literatura. Do Álvaro Costa ao David Ferreira, já ouvi todos. A eles se junta uma plêiade de músicos e cantautores. Uma coisa eu sei: é incomparavelmente mas fácil escrever letras para canções – mesmo que sejam geniais – do que livros a sério, pelo menos os da grande literatura. E é necessário, incomparavelmente, mais talento e mais trabalho para produzir um romance ou uma novela imortal. Nada nos admira, quando sabemos que, por exemplo, Jorge Amado nunca ganhou o Nobel. É por isso que, a esta hora, alguns grandes escritores, que construiram uma obra com milhares ou milhões de páginas, discutidas nos grandes fóruns literários, estudadas nas universidades, devoradas por milhões de leitores, aclamadas pela crítica, devem sentir uma forte frustração perante a atribuição do «Nobel Pop». Em que bibliotecas poderemos encontrar a obra de Dylan? Que livros dele vão pôr os livreiros nas montras?
Há três razões principais para a atribuição deste Nobel: a necessidade que a Academia Sueca tem de surpreender, primeiro. Segundo, a homenagem à cultura popular, à tradição oral e à palavra musicada. Mas ninguém me tira da cabeça (e esta é a terceira razão) que se não fossem as eleições americanas isto não teria acontecido. E que, se o comité Nobel preferisse beneficiar Donald Trump, podia ter escolhido a música “country” exaltadora da cultura farwest… E dava o Nobel ao Kenny Rogers, por exemplo.