A “Preta Fernanda” (Andresa do Nascimento, cabo-verdiana – c.1859-c.1918) deve ser das poucas mulheres de origem africana que tem direito a um lugar na imensa estatuária da nossa capital. Poucos saberão quem ela foi, em que monumento a podemos ver e por que razão ela lá está. Da mesma forma, a esmagadora maioria dos lisboetas que passa pela Rua do Poço dos Negros, não sabe o porquê desse nome, nem nenhum poder parece ter tido a necessidade de o mostrar em forma pública, com um memorial bem visível que anule o apagamento da memória e mostre aos cidadãos a forma como vivia parte da população de Lisboa, a de origem africana.
A História, como instrumento de gestão e consignação da memória coletiva, de uma identidade, é subtil e trabalha as mentes através do que parece óbvio, da criação de senso-comum. Por exemplo, somos incapazes de tomar consciência da forma escravocrata como a riqueza da Europa se criou, exatamente como não conseguimos ter um olhar crítico em relação à famosa Democracia da Grécia Clássica de que gostamos de nos dizer descendentes: continuamos a glorificar e ter como modelo civil e cidadão uma sociedade que era sustentada por escravos e onde as mulheres não tinham qualquer direito civil; quem votava nas famosas assembleias atenienses era um número mínimo de cidadãos. E somos, afirmamo-lo, herdeiros dessa “democracia”.
Da mesma forma como se silencia o lugar da escravatura, o seu peso na construção do capitalismo, fazemos o mesmo em relação a judeus e muçulmanos. Continua a não existir em Lisboa um memorial às vítimas da Inquisição, além dos portugueses quase nada saberem sobre essa parte da sua identidade.
São os silêncios, os apagamentos, as ausências ou, mais refinado, são as visões românticas que enganam o olhar incauto: são as inúmeras categorias de nos representar que nos tolhem a capacidade crítica e construtiva: é o Luso-tropicalismo, mas também o “país de brandos costumes”, a célebre miscigenação e a “criação” do mulato, ou o mítico “encontro de culturas” – a figura de um Cristo com olhos amendoados ou uma tez mais escurinha, não é encontro de culturas; foi imposição religiosa, que não sabemos como e com que violência teve lugar, que recolhe no mundo local um ou outro elemento para a figuração; mas é tudo menos “encontro de culturas”, sendo unicamente “imposição de cultura”.
Os processos de construção da memoria coletiva sempre foram detidos e dirigidos por quem venceu e formatados pelo que cada geração quer recolher do passado, construindo um “saber oficial” que se transmite nos manuais e na bibliografia de grande tiragem. Nada de novo no que aconteceu até aqui: um quase não questionamento; e o que começa hoje a ter lugar: uma necessidade de desmontar essa visão do passado.
O olhar para a História não pode ser um tribunal, e temos sempre que ter em conta os contextos e não analisar o que aconteceu como se pudesse ter tido lugar com as categorias de hoje em dia. Muito menos, devemos olhar para o passado demonizando-o e procurando, em sentido inverso, apagar a História. Ela aconteceu, no seu tempo e com os seus atores, e com os seus aspetos que criticamos e aqueles que foram positivos na construção do mundo que temos.
Mas essa honestidade de não cair em fáceis revisionismos, não pode anular a capacidade crítica de olhar para o passado como construtor do presente. Há não muito tempo, num debate, um eminente académico terminava a sua crítica à minha intervenção dizendo: “porquê esgravatar o passado e trazer ao de cima feridas que estão saradas?”. Este é o cerne do problema: julgar, ingenuamente, que não temos problema algum.
Temos problemas sim. Para além de termos uma parte significativa dos nossos concidadãos que se sentem silenciados, esse silêncio continua a espelhar-se na inexistência de oportunidades e na impossibilidade de o “elevador social” funcionar.
Uma sociedade que olha para o passado como encerrado, é incapaz de se reinventar e de ser equitativa. Manter o status quo da memória, como uma bênção de uma identidade encontrada e inalterável, é miopia, desonestidade e incapacidade de olhar para ao mundo à nossa volta e ver como ele se modificou. O passado, a forma como o usamos, as narrativas que com ele construímos, são a base para se alimentar uma humanidade que aprenda a integrar e a ser fraterna.
O desenvolvimento, como dinâmica que colhe materiais na inovação e na capacidade para criar oportunidades, só acontece fora dos traumas e das verdades formatadas. É da capacidade de questionar, e de ver de diversos ângulos, que nos enriquecemos, sendo mais humanos.
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