“A primeira marca de humanidade é a sepultura”
Jacques Lacan
O tema da eutanásia em Portugal ganhou recentemente uma enorme importância, resultando (e resultado de) acesos e emotivos debates sobre os diferentes entendimentos do que é eutanásia, variados pontos de vistas e argumentos prós e contras. Essa discussão está materializada na já longa batalha entre o Parlamento, o Presidente da República e o Tribunal Constitucional, sobre a (não) constitucionalidade do decreto que regula a eutanásia. O tema é complexo e polémico e não deve ser discutido de ânimo leve.
Em primeiro lugar, um esclarecimento: não vou falar aqui da eutanásia do ponto de vista médico, jurídico, ético-moral, etc; só falo do (pouco) que sei. Por isso, a minha motivação é discutir este tema numa perspetiva sociológica, aliás razão de ser da rubrica ‘sociologia do quotidiano’.
Ao abordar o polémico tema da eutanásia (do grego, ‘eu-thanatos’/‘boa-morte’, também entendida como ‘pôr fim à vida’, ‘antecipar a morte’ e ‘suicídio assistido’) é obrigatório falar da morte, a inevitabilidade da vida.
É indiscutível que a reflexão sobre a vida (eros) e a morte (thanatos) está presente em todos os tipos de sociedades, em qualquer tempo (histórico) e espaço (geográfico), sem exceção. O sentimento, o entendimento, ou seja, a maneira de conceber e de lidar com a morte, depende dos contextos históricos, sociais e culturais-religiosos. Mas uma coisa é certa: a eutanásia não é um assunto recente e vem sendo abordado segundo várias perspetivas: histórica, filosófica, antropológica e religiosa.
Para compreender a morte numa perspetiva histórica, um autor de referência é Philippe Ariès (1914-1984), com a sua obra O Homem Diante da Morte (1977).
Conforme testemunha a história, as grandes civilizações também praticavam a eutanásia. Na Índia, os doentes incuráveis eram jogados ainda vivos no Ganges, o rio sagrado. Na Grécia e em Roma, com uma cultura de valorização da ‘boa morte’, o Senado tinha o poder de decidir sobre a morte dos idosos e dos incuráveis, utilizando, para isso, o envenenamento.
Caio Plínio (romano do século I), numa das suas obras, apresenta a seguinte reflexão/inquietação: “Até quando deixarás tu o pobre homem atormentado de dores? Porque recusas uma boa morte a quem não pode ter a vida?”.
Na Idade Média (séculos V-XV), os feridos em batalhas para se livrarem da dor e do sofrimento pediam para serem mortos pelos próprios companheiros.
No surgimento das sociedades modernas, o filósofo inglês Thomas Morus (século XVI; posteriormente, santo da Igreja Católica), na sua famosaobra Utopia (1516), escreveu o seguinte sobre aqueles que sofrem uma doença grave prolongada:
“… atendendo a que o doente já não consegue corresponder às funções vitais e que se tornou um fardo para os outros … que está apenas a sobreviver penosamente … e já que a vida é para ele um tormento … um cárcere e um instrumento de tortura …se a doença é incurável, então, os sacerdotes [Igreja] e os magistrados [Estado] devem livrá-lo deste sofrimento” (adaptado por mim).
Posteriormente, o visconde e lorde inglês Francis Bacon, aristotélico de formação, na sua obra intitulada Historia Vitae et Mortis (publicada em 1623), defendia que a eutanásia era o tratamento adequado para os doentes incuráveis.
Destacando agora a perspetiva filosófica, para Aristóteles (384-322 a.C.), a morte é o que há de mais temível na vida humana. O também filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), ao contrário de Aristóteles, reagiu positivamente, com a seguinte reflexão: “como posso temer a morte? A morte é uma quimera: porque enquanto eu existo, ela não existe; e quando ela existe, eu já não existo”. Para Martin Heidegger (1889-1976), a morte é uma inevitabilidade da vida – “o Homem é um ser que caminha para a morte”.
A verdade é que a única certeza que temos quando nascemos é que, mais cedo ou mais tarde, teremos o absoluto e irrevogável encontro com a morte. Há uma frase do filósofo alemão Max Scheler (1874-1928), na obra Morte e Sobrevivência, que resume bem esta ideia: “vivo, mas não sei quanto tempo. Morro, mas não sei quando”.
É óbvio que toda a gente espera que o encontro com a morte seja o mais tarde possível; com exceção dos que sofrem e imploram (os que estão em condições de implorar, evidentemente) pela eutanásia, por uma (boa) morte assistida.
(continua)
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.