Com a secção ‘Sociologia do Quotidiano’ pretende-se tratar acontecimentos do dia-a-dia, através de uma análise dos processos do funcionamento e transformação da sociedade, dos diversos comportamentos e práticas (individuais e de grupos) da vida quotidiana, incluindo as interações sociais e políticas, onde se jogam os interesses (que por vezes conflituam) dos diferentes agentes sociais.
Para falar apenas do (nosso) contexto judaico-cristão, o homem sempre teve um(o) papel dominante na sociedade. No Antigo Testamento, em Génesis, a mulher é um ‘subproduto’ do homem; é feita a partir do corpo masculino. No Novo Testamento, o Apóstolo Paulo ensina, ou melhor, endoutrina: “Mulheres, sujeitem-se cada uma a seu marido …, pois o marido é o cabeça da mulher … [que] estejam em tudo sujeitas a seus maridos” (Efésios 5:22).
Mas as sociedades humanas não são estáticas. Na verdade, são historicamente marcadas pelas mudanças e revoluções sociais. No mundo ocidental, contexto de enormes e profundas transformações – principalmente a partir da década de 1960, quando se intensifica a discussão do género -, o papel do masculino e do feminino na sociedade alterou-se significativamente. No entanto, apesar do enorme avanço da igualdade dos direitos das mulheres, não ocorreu a tão desejada emancipação feminina. Porquê?
Como nos ensina a Sociologia, a religião, desde sempre, tem desempenhado um papel crucial na formação e funcionamento das sociedades e na definição de ideias e comportamentos, coletivos e individuais. Há aqui duas possibilidades: a pertença religiosa deveria funcionar como um processo de libertação do indivíduo; mas, na verdade, tem servido mais como um processo de aprisionamento do indivíduo (e da mulher, em particular) no seu (devido) lugar na sociedade.
No mundo islâmico, o de vertente fundamentalista, a situação é dramática para a mulher. Mas será uma exceção? No catolicismo, apesar da enorme importância teológica da figura de Maria (veja o caso de Fátima) e do trabalho e das meritórias ações das mulheres dentro da Igreja Católica – existe até mesmo uma teologia feminista -, esta instituição, totalmente dominada por homens, nega-lhes o poder.
Vejamos dois casos atuais e paradigmáticos da relação entre mulheres, religião e alto poder, nos Estados Unidos e Brasil, dois países com ethos nacional supostamente fundado no liberalismo, individualismo, liberdade e igualdade entre os géneros.
1. Amy Barrett: está ligada ao movimento religioso ultraconservador ‘People of Praise’, que defende a total submissão da mulher ao homem, enfatizando que o lugar da mulher é cuidar do lar, do marido e dos filhos – “é importante que nós mulheres verbalizemos o nosso compromisso com a submissão aos homens”. Este grupo religioso promove os papéis tradicionais dos homens como decisores e das mulheres como donas de casa, mesmo que tenham ambições profissionais, como é o caso de Barrett. Indicada por Trump e aprovada esta semana pelo Senado para a Suprema Corte dos Estados Unidos, esta (fervorosa católica-carismática) juíza já admitiu, publicamente, que as suas decisões são proferidas como mulher temente a Deus e aos homens (neste caso, ao marido e ao Presidente Trump).
2. Damares Alves é uma pastora evangélica, reacionária, que, segundo ela, já falou com Jesus pessoalmente. Forte defensora da total submissão da mulher ao homem, é autora destas preciosidades: “me preocupo com ausência da mulher de casa”; “as feministas [estão] levantando uma guerra entre homens e mulheres”; “o Brasil era dominado pelos gays”. Foi nomeada por Bolsonaro (uma caricatura do Trump) – vejam só que ironia – para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Esses dois exemplos demonstram que, infelizmente, ao invés da religião (seja ela católica ou evangélica) libertar, aprisiona as mulheres ao seu secundarizado papel na sociedade. Mesmo quando atingem um enorme poder político e de influência, como o caso da Barrett e Damares, totalmente subjugadas pelos homens, defendem uma(a) agenda machista. As duas foram, respetivamente, nomeadas por Trump e Bolsonaro, ambos com esposas-bibelôs, dois líderes misóginos, que menosprezam, inferiorizam as mulheres, negando-lhes os seus plenos direitos.
Há um ditado que diz que ‘as mulheres são as piores inimigas das mulheres’. Com esses (maus) exemplos aqui apresentados, as mulheres nunca irão conseguir a tão merecida emancipação e igualdade de género.