Não pode ter sido por lapso nem por inabilidade linguística. Também ninguém, no seu perfeito juízo, admite a possibilidade de se tratar de um descuido. Tratando-se de Marcelo Rebelo de Sousa só pode ter sido um ato perfeitamente ponderado e tomado depois de calculadas as consequências.
Em vésperas da sua chegada oficial ao Palácio de Belém, Marcelo publicou no Expresso o último texto que escreveu antes de iniciar funções como Presidente da República. É um ensaio dividido em 13 pontos, em que analisa os desafios colocados a todos os Presidentes desde a fundação da República e enumera as lições que devem ficar para o futuro. Apesar de chegar a uma conclusão importante nesta momento da vida do País e do mundo, que merece ser debatido e aprofundado – a de que “o esvaziamento da política e, por maioria de razão, da cultura que deve estar-lhe subjacente não pode ser uma solução de futuro” – arrisco afirmar que o facto mais significativo do seu texto é quase impercetível para o leitor comum. Esse facto não se encontra na forma como se refere aos seus antecessores, nem às fórmulas de tratamento utilizadas para nomear cada um deles. Encontra-se, isso sim, na nota de rodapé com que termina o artigo e que, de alguma maneira, enuncia uma declaração de intenções: “Marcelo Rebelo de Sousa escreve de acordo com a antiga ortografia”.
Não pode ter sido por lapso nem por inabilidade linguística, repito. Existem, como todos sabemos, corretores automáticos que, em menos de um segundo, atualizam, no computador ou no tablet, um texto de acordo com as normas do Acordo Ortográfico. Se o texto foi publicado com a “antiga ortografia” foi porque Marcelo quis que assim tivesse sido. E esse, insisto, é o facto mais importante e relevante do seu texto – mesmo que nem todos os leitores reparem no “pormenor” de ele escrever os nomes dos meses do ano com maiúsculas e continuar a usar as consoantes mudas em palavras como “excepção”, “directo” ou “carácter”.
Esta “declaração de intenções” ganha maior significado por, ao longo da campanha eleitoral, Marcelo e a sua equipa sempre se terem recusado a manifestar opinião sobre o Acordo Ortográfico, enquanto outros candidatos, como Marisa Matias, Maria de Belém, Edgar Silva, Paulo de Morais e Henrique Neto, nomeadamente, declaravam a sua oposição ou proponham que o mesmo fosse alterado.
De Marcelo, sobre este assunto, apenas se conhecia um par de declarações mais ou menos contraditórias ou, no mínimo, não coincidentes. Em 2008, num debate realizado na Biblioteca Municipal de Valongo, disse que as alterações introduzidas pelos Acordo Ortográfico “não são substanciais” para a Língua Portuguesa e que, nessa medida, existia, então, “um debate artificial sobre a questão”.
Mais tarde, em 2014, reconheceu que “apesar de defender” o Acordo, ainda não se tinha adaptado às novas regras ortográficas. “Escrevi assim toda a vida. Não vou mudar”, terá afirmado, segundo o relato do jurista Artur Magalhães Mateus, num artigo de opinião no jornal Público.
A verdade é que, conforme demonstrou no último fim de semana, Marcelo Rebelo de Sousa continua sem se adaptar às regras do Acordo Ortográfico. O que, naturalmente, suscita uma questão fundamental: Se o novo Presidente continuar a escrever sem as regras do Acordo Ortográfico isso é uma exceção ou uma excepção?
Convinha sabermos todos, rapidamente, a resposta. Até para saber se se trata de um ato de magistério de influência ou, simplesmente, de uma desadequação às regras a que estamos obrigados.