Nas últimas duas décadas, tive a sorte e o privilégio de assistir, no estádio, às cerimónias de abertura de cinco Jogos Olímpicos. Em qualquer uma delas presenciei espetáculos inesquecíveis que conseguiam condensar, no espaço de um par de horas, o melhor que existe em cada país. De Atlanta, em 1996, retenho a imagem de um silencioso Muhammad Ali, quase semi-deus, a acender a chama olímpica perante uma multidão em delírio; de Sydney, em 2000, recordo a homenagem à cultura aborígene que conseguiu transformar um estádio com 120 mil pessoas num pedaço desértico do “outback” australiano; de Atenas, em 2004, retive a lição coreografada sobre os fundamentos da Europa, sem os gregos precisarem de recorrer minimamente à estética hollywoodiana; de Pequim, em 2008, ficou-me a imagem do que consegue construir a força organizada e metódica de um povo quando unida por uma civilização milenar; finalmente, de Londres, em 2012, retenho os ecos apoteóticos de uma canção que, aos primeiros acordes, conseguiu levantar todos os espetadores no estádio, como se estivessem a partilhar um património comum e universal.
Estive lá, de quatro em quatro anos, mas não me perguntem com que música de fundo entraram as equipas dos EUA, Austrália, Grécia e China no desfile dos atletas, das cerimónias de abertura que organizaram. Mas de Londres 2012 recordo-me perfeitamente e não foi por ter sido há menos tempo. Recordo-me, isso sim, do arrepio repentino, do formigueiro no corpo, e do impulso coletivo que, em segundos, fez milhares de pessoas saltarem dos seus lugares e aplaudirem os atletas da Grã-Bretanha como se fossem os seus, após mais de 90 minutos de um desfile de 204 nações que, inevitavelmente, se torna aborrecido, longo, monótono e repetitivo. Como se muda isso? Naquela noite de 27 de julho de 2012 foi simples: a entrada dos representantes da delegação conjunta de Inglaterra, Escócia e País de Gales, foi acompanhada pelos acordes de “Heroes”, de David Bowie, num crescendo que, em pouco tempo, levou um estádio inteiro a cantar, a dançar e a unir-se numa mesma celebração.
Ao contrário do que desejava Danny Boyle, que dirigiu a cerimónia, David Bowie não esteve fisicamente no estádio. A sua música era apenas parte de uma banda sonora, estudada e pensada, para tentar criar um efeito galvanizador, mas também de celebração e de festa. Conseguiu muito mais do que isso: num momento único, fugaz mas inesquecível, o mundo uniu-se a cantar “We can be heroes, just for one day”. Graças aos valores universais do desporto. Mas também embalado pelo ritmo de uma canção que conseguiu tornar-se um hino global. E essa é uma das provas maiores da intemporalidade da arte de David Bowie.