Cresci a ouvir dizer que não se deve misturar entretenimento com coisas sérias. “Trabalho é trabalho, conhaque é conhaque”. E sempre me intrigou o facto de haver cada vez mais gente que passa horas infindáveis no admirável mundo dos jogos. Puzzles. Enigmas. Slot machines. E muitos outros, a solo e em grupo, à distancia de um clic, nessa gigantesca matriz que é a web 2.0.
Os jogos interativos e de estratégia cativam-me, embora nunca me tenha envolvido em batalhas e sagas virtuais, por mais estimulantes que sejam. Lembro-me dos tempos do Super Mário, da Lara Croft, do Second Life e do Warcraft. O Farmville e afins não me despertam interesse. O mesmo não posso afirmar sobre um jogo-filme para adultos que experiementei numa PS3 emprestada. O impacto que teve em mim na altura levou-me a concluir que seria melhor parar por ali, sob pena de perder tempo precioso para desfrutar do ócio, da contemplação ou de outros prazeres como o convívio presencial e a prática de atividades fora de casa, desporto e viagens incluídos.
A brincar, a brincar…
Nunca mais pensei no assunto até ao dia em que despertei para essa nova tendência que dá pelo nome de gamificação. Já tinha ouvido falar dela numa conferência dedicada a temas de tecnologia, mas nunca percebi a real dimensão do fenómeno, que consiste na aplicação de técnicas de jogo em contextos diversos, com a finalidade de simplificar e tornar atrativas, aos olhos dos potenciais visados, atividades ditas “chatas”, que exigem esforço, foco e outras capacidades canalizadas para esse fim. Ou seja, a arte de levar o prazer ao dever, dando-lhe um toque mais arrojado e tentador.
Num abrir e fechar de olhos, gamificar passou a ser a galinha dos ovos de ouro para estimular a criatividade e a competição no trabalho; garantir a eficácia de mensagens com procedimentos de segurança; envolver emocionalmente públicos em torno de uma ideia, produto ou serviço; motivar funcionários e colaboradores a aderir a um objetivo; e testar ideias e métodos em regime de simulação.
Agora até penso duas vezes antes de tecer críticas ao facto de andar meio mundo louco com o Pokemon Go e respetivos spots nos restaurantes e bares para atrair clientela. Ou de existirem psicoterapeutas a “prescrever” este jogo a pessoas com ansiedade social e ataques de pânico, do mesmo modo que têm vindo a comprovar a eficácia do uso da realidade virtual na superação de fobias.
O lado sério da diversão
Algumas áreas onde a gamificação está a ganhar terreno
- Marketing e vendas: Os sistemas por pontos ou créditos nos supermercados, os ebooks e dicas grátis em troca da subscrição de newsletters, os sorteios (até nas políticas públicas, como sucedeu com a estratégia adotada pelo Ministério das Finanças com o Portal “e-fatura” e os topos de gama) e os sistemas de bonificação de “viajante frequente” (companhias aéreas, aluguer de carros e outros).
- Formação e tutoriais “faça você mesmo”: Da alimentação ao fitness, passando pela reconfiguração de equipamentos eletrónicos ou resolução de problemas comuns, deixou de ser uma tarefa árdua só para “entendidos” e nerds e pode parecer uma brincadeira de crianças. Fazer o que seria tarefa de especialista traz sabor a recompensa e a sensação de ter alcançado uma vitória épica.
- Segurança no Trabalho: A demonstração de normas e procedimentos de segurança a seguir pelos passageiros antes da descolagem de um avião, por exemplo, faz-se com videoclips que misturam animação, atores e muito humor à mistura (a presença da hospedeira fica em segundo plano).
- Recursos humanos: apresentar a potenciais candidatos a simulação da função a que se candidatam (como se se tratasse do jogo The Sims) tem outro appeal.
- Investigação e Desenvolvimento: Mais de metade dos projetos de inovação global nas empresas é feito com o recurso a videojogos, segundo a consultora de negócios Gartner Group.
- Relações pessoais: Aplicações e organização de eventos pagos para encontrar amigos, companheiros de viagem, parceiros sexuais e talvez almas gémeas.
‘Homo Ludens’
O que pensaria disto – da gamificação da vida quotidiana – o pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott, defensor da arte de “brincar”, enquanto meio de estimular a imaginação infantil e a ligação afetiva entre a criança e o cuidador? Não era este o caminho para atualizar estas competências, mais tarde, noutras áreas da vida (na política, na filosofia, na experiência cultural e na intimidade adulta)?
Antes de Winnicott, no século XIX, o antropólogo holandês Johan Huizinga advogava que o jogo era vital para a espécie humana, por permitir imitar comportamentos adaptativos e ensaiar, em ambiente não ameaçador, outras formas de fazer, mais entusiasmantes e… gratificantes, aplicando-as, depois, na vida real. Isso mesmo foi demonstrado pelos estudos de neurociência: quando nos entregamos a algo que nos dá prazer libertamos generosas doses de dopamina, esse motivador cerebral por excelência.
Percebe-se porque é que gamificar funciona e vale ouro, em especial para os decisores. Os mestres da gamificação sabem que “quem corre por gosto – ou alinha no jogo – não cansa”. Antes dá o seu melhor, quase sem dar por isso, como se o jogo fosse a própria (por vezes a única) recompensa. Ou a primeira de muitas outras, que nem se previam à partida.
A vida é um grande jogo
Há cinco anos, numa célebre TED Talk, uma designer de jogos de computador que sofrera uma lesão cerebral, explicava como tinha saído da depressão grave em que estava após imaginar como seria se “ficar melhor” fosse a meta de um jogo. A brincadeira converteu-se num caso sério de sucesso, com o jogo e o livro SuperBetter. Projetos colaborativos como a Wikipedia, o sistema Linux ou o de mapear a enzima do VIH começaram por ser apenas desafios divertidos em que pessoas sem (quase) nada em comum se empenhavam em encontrar soluções para um problema pelo gosto em fazê-lo. No universo das startups, a gamificação é o ar que se respira e o combustível para o que virá a seguir.
Enquanto tudo isto acontece, há cientistas a alertar para implicações menos simpáticas desta tendência, que apelidam de Taylorismo 2.0. Ou os princípios da gestão científica – técnicas de trabalho para produção em menos tempo e com baixos custos – que marcou a revolução industrial (caricaturada e imortalizada por Charlie Chaplin no filme Tempos Modernos), só que agora, em versão actualizada, na era digital.
Jennifer deWinter, do Instituto Politécnico de Worcester, no estado Americano de Massachusetts, especialista em media interativos e desenvolvimento de jogos, defende que a lógica capitalista está a apropriar-se do conceito de jogo de forma bastante questionável. Resultado: o que seria para ficar na esfera do lazer ganha cada vez mais a função de instrumento de gestão empresarial, útil para recolher e monitorizar dados pessoais, cuja análise serve para avaliar o desempenho dos subordinados pela forma como se comportam em cenários de jogo.
O que é real, afinal?
Quando o jogo é muito, a probabilidade de perder o controlo é alta. Sabendo-se que as necessidades de pertença, estatuto e reconhecimento são alimentados pela gamificação, percebe-se como foi possível o colapso bolsista e uma crise à escala global, cujos efeitos na economia real ainda estão para durar. Há quem argumente que estamos a entrar em terreno minado. Ao gamificar sem limites, podeemos estar a infantilizar cidadãos ou, pior, a aliená-los,como sucede nas distopias.
No meio disto, uma certeza: ficção e realidade tendem a (con)fundir-se. Basta pensar nas finalidades do uso dos drones, que vão muito além das puramente recreativas. Ou nos veículos sem conductor. Ou na Internet das Coisas que está aí a chegar também. Caso restem dúvidas, nada melhor do que fechar esta crónica com a referência a um artigo da Super Interessante (edição de fevereiro), que divulgava a intrigante pergunta de um jornalista a Elon Musk (CEO da Tesla Motors, da SpaceX e fundador da Paypal), durante uma conferência de código realizada na Califórnia.
“Vivemos na realidade ou tudo não passa de uma simulação?” A resposta do empreendedor e filantropo sul-africano gerou espanto na audiência e lançou uma onda de delírio nas redes sociais: “Com os avanços na realidade virtual e aumentada, a partir de certo ponto não se distingue o que é simulação e o que não é… além disso, as probabilidades de estarmos num mundo real é de um em mil milhões”.
A sério?! É muito jogo…