No dia 1 de junho de 1964, Jean Monnet, o grande arquiteto da integração europeia, e o seu Comité de Ação para os Estados Unidos da Europa adotaram uma declaração que defendia a criação de uma parceria gradual e igualitária entre uma Europa unida e os Estados Unidos da América. Nessa ocasião, reconhecia-se o papel crucial de Washington na defesa conjunta da liberdade, assim como na reconstrução e na segurança da Europa, após a II Guerra Mundial. Pela primeira vez na História, o país mais poderoso do mundo optara por ajudar outros a unirem-se, em vez de seguir o antigo princípio europeu de “dividir para conquistar” (“divide and conquer”).
Contudo, passados quase 61 anos desde essa declaração visionária, a Europa permanece longe de se afirmar como um parceiro verdadeiramente igualitário nesta relação, sobretudo no que diz respeito à segurança, à defesa e à política entre as grandes potências. Esta persistente dependência norte-americana e a incapacidade da Europa em conquistar a sua autonomia estratégica são sintomáticas da complexa situação geopolítica em que o continente se encontra atualmente.
A explicação para este impasse reside, em grande parte, na intrincada teia de desafios que a Europa enfrenta: desde a diversidade de interesses nacionais até às pressões externas de potências rivais. A falta de uma visão unificada e de mecanismos eficazes para implementar uma política externa e de defesa verdadeiramente comum continua a minar as aspirações europeias em se tornar um ator global de peso equivalente ao seu parceiro transatlântico.
Esta realidade não apenas compromete a influência da Europa na ordem mundial, mas também levanta questões cruciais sobre a sua capacidade de proteger os seus próprios interesses e valores num mundo cada vez mais multipolar e instável.
A reeleição presidencial de Donald Trump em novembro de 2024, acompanhada pelo controlo republicano no Congresso norte-americano, coloca a União Europeia numa nova encruzilhada estratégica. O regresso do magnata à Casa Branca não é apenas mais um capítulo na política americana; representa um desafio direto à raison d’être do projeto europeu e à ordem liberal mundial cada vez mais anacrónica.
A abordagem transacional de Trump às relações internacionais, marcada por uma mentalidade de soma zero, desprezo por alianças tradicionais e preferência por negociações diretas entre líderes, ameaça dividir politicamente a Europa. Aliados podem ser reduzidos a clientes seletivos, enfraquecendo o quadro multilateral que sustentou as relações transatlânticas por décadas. Propostas como taxas aduaneiras de 10%-20% sobre produtos europeus ou uma taxa de 60% sobre produtos chineses podem desencadear uma guerra comercial com impactos profundos na economia europeia.
No campo da segurança, o ceticismo de Trump em relação à NATO e o seu “plano de paz” para a Ucrânia levantam sérias dúvidas sobre a integridade territorial do país e o futuro da arquitetura de segurança europeia, especialmente entre as elites políticas mais tradicionais de Bruxelas. Para agravar o cenário, os EUA enfrentam o desafio simultâneo de lidar com o “two-peer challenge” – China e Rússia – tanto na Europa como no Indo-Pacífico, pressionando a Europa a repensar décadas de dependência estratégica dos norte-americanos na sua defesa coletiva.
Face a este cenário, a UE encontra-se num dilema: alinhar-se com as exigências de Trump ou resistir, afirmando a sua ainda inexistente autonomia estratégica?
Por um lado, se a Europa resistir, ela deve permanecer firme nos seus valores democráticos e no compromisso com o multilateralismo, mesmo que isso implique divergir da abordagem transacional de Trump. Adotar uma postura mais assertiva, resistindo às exigências norte-americanas e acelerando os esforços para alcançar a autonomia estratégica europeia, pode revelar-se essencial. Embora esta estratégia tenha o potencial de fortalecer a posição da Europa a longo prazo, é importante reconhecer que poderá acarretar vulnerabilidades económicas e de segurança no curto prazo.
Por outro lado, será que a Europa tem capacidade de se distanciar dos Estados Unidos, especialmente num contexto em que Donald Trump esteja no poder? Temo que uma resposta preliminar seja negativa.
Se a Europa se alinhar a Trump, é essencial que a União Europeia adote uma abordagem pragmática para lidar com os desafios impostos. Uma estratégia viável seria explorar os instintos empresariais de Trump, reconhecendo que a relação comercial entre a Europa e os Estados Unidos é, acima de tudo, bidirecional. A lógica económica pode desempenhar um papel crucial para suavizar as tendências protecionistas e promover um diálogo mais construtivo.
No entanto, nem o alinhamento total, nem a resistência absoluta são soluções viáveis. A UE precisa de uma estratégia equilibrada que proteja os seus interesses vitais, mantendo canais de diálogo abertos com Washington. Para isso, proponho quatro pilares fundamentais.
Em primeiro lugar, a Europa deve reforçar a sua autonomia estratégica, por mais difícil que essa meta possa parecer no momento presente. A União Europeia precisa de acelerar o desenvolvimento de capacidades de defesa independentes e reduzir a sua dependência tecnológica dos Estados Unidos.
O que não implica romper com a NATO, mas complementá-la com uma estrutura de defesa europeia verdadeiramente coletiva. Uma proposta ousada seria a criação de um “Eurodeterrent” integrado na NATO, formando uma espécie de “Schengen” ou “Zona Euro” para defesa e segurança coletiva. Esse modelo uniria o Reino Unido e os 23 países membros tanto da NATO quanto da UE, reforçando a dissuasão nuclear e conferindo à Europa maior protagonismo global.
Em segundo lugar, Bruxelas deveria intensificar os esforços para diversificar ainda mais as suas parcerias comerciais. Com os EUA cada vez mais voltados para si, a União Europeia precisa de reforçar as suas relações comerciais com outras regiões. A celebração de acordos estratégicos pode mitigar os efeitos de possíveis taxas aduaneiras americanas e fortalecer a resiliência económica europeia. Parcerias estratégicas com países emergentes e blocos regionais são fundamentais para reduzir vulnerabilidades e promover uma maior autonomia económica. Por exemplo, a Europa precisa de uma nova estratégia para cativar novamente o Sul Global.
Em terceiro lugar, é fundamental manter canais de comunicação abertos. A União Europeia deve preservar o diálogo com a administração norte-americana, sem comprometer os seus valores fundamentais. A abordagem sugerida por Ursula von der Leyen, de iniciar discussões por interesses comuns antes de avançar para negociações mais detalhadas, demonstra boa vontade e preserva a integridade europeia em questões essenciais. Nomeadamente, na questão da ameaça chinesa, a Europa pode facilmente alinhar-se com Trump numa estratégia competitiva e de segurança para lidar com a China.
Por último, preservar a coesão interna será o maior desafio para a UE frente às pressões externas. Divergências entre países como França e Alemanha precisam de ser superadas para garantir uma frente unida. Sem coesão, qualquer estratégia europeia será facilmente enfraquecida por interesses concorrentes.
Somente assim a Europa poderá navegar com sucesso as águas turbulentas da era Trump, e além, e consolidar o seu papel como ator global relevante e independente. O futuro da integração europeia depende da sua capacidade de se adaptar, de inovar e, acima de tudo, de se manter fiel aos princípios que a fundaram, mesmo diante dos mais complexos desafios geopolíticos e geoestratégicos. Ao fazê-lo, a União Europeia não estará apenas a resistir às tempestades do presente, mas também a honrar a visão de Monnet.