Privacidade. Num mundo hiperligado e hiperativo, onde a tudo se acede e tudo se mostra, ter e guardar um segredo pode ser uma forma de auto preservação (que o digam muitas figuras públicas) e um culto meditativo. Ou a única forma de estar consigo próprio, sem perder o pé e com um reduto de liberdade pessoal. Talvez por isso mesmo, o culto do secretismo, que sempre existiu, esteja com a sua cotação em alta. “O melhor é que ninguém saiba”. Um segredo é, por definição, algo que não deve ser partilhado. Que nem às paredes se confessa (murais das redes sociais incluídos). E se for o nosso melhor amigo? Ou parceiro íntimo?
Problema nº 1: O segredo nasce da relação com algo ou alguém
Seja uma característica de personalidade ou de identidade, um evento do nosso passado ou um vício sancionável, o que sabemos de nós e mantemos secreto teve – ou tem – lugar numa experiência com terceiros. Variáveis que escapam ao nosso controlo e podem revisitar-nos, a qualquer momento e sem aviso. Este é um capital de risco: há sempre um dia em que a pessoa com quem mais se partilha a vida pode tropeçar na descoberta daquele vicio privado, do episódio embaraçoso do passado que às vezes sobressalta o sono e de outros tópicos biográficos sensíveis que nem se sabe bem como gerir sozinho, quanto mais abrir o jogo e expô-los à consideração de outrem. Dito isto, há que contar com a imprevisibilidade e o acaso.
Problema nº 2: É preciso ter bons amortecedores de stresse
Ser guardião de um ficheiro secreto tem efeitos secundários não negligenciáveis, a nível cerebral. Aqui, subscrevo inteiramente as descobertas da neurociência, publicadas na revista Forbes: a situação comprometedora em que se fica assenta no conflito entre o córtex cingulado (emocional), programado para dizer o que consideramos ser a verdade, e o córtex pré-frontal (lógico), que inibe a resposta “natural” (de contar). Quanto maior o tema a esconder, mais intenso o dilema e a resposta de ataque-ou-fuga (ansiedade + libertação de hormonas de stresse (cortisol e epinefrina). A prolongar-se no tempo, tal reação debilita a memória, a capacidade de foco e produz alterações metabólicas, arteriais, gastrintestinais e outras que tais. Conclusão: a máxima “este assunto morre aqui, em mim” faz mal à saúde, a menos que se tenha muito estofo e a opção de confiar angustias a alguém que possa guardar sigilo.
Problema nº 3: Uma vez revelado, não há caminho de volta
Antes de tirar um ficheiro secreto do seu armário, negoceie com os seus dois motores de decisão – o cérebro e o coração – e antecipe as reações, suas e do outro. Na melhor das hipóteses, ficará com alivio por abrir a caixa de Pandora. Respirar até 10 ou 50 ou 100 durante o tempo de processamento da pessoa ‘brindada’ com a revelação é outro desfecho provável. Por fim, há a possibilidade de ter de conviver com a lei da reciprocidade e o efeito surpresa. Ou seja, descobrir o que não pediu ou não consegue processar: confissões em roda livre, mais portas abertas e várias correntes de ar. Aí, resta-lhe aprender a converter os novos dados em caminhos de bem-aventurança, sob pena de ficar refém de um purgatório sem fim à vista. Em todo o caso, convém ter presente o seguinte: se não há culpados, também não há castigos.
Desafio nº 1: O que eu escondo é também o que melhor me define
O psicanalista suíço Carl Jung chamava-lhe ‘lado sombra’. Aquilo que mais detestamos nos outros é, afinal, o que menos gostamos em nós (e escondemos, por vezes até, da nossa consciência). Há os segredos com S grande. Orientação sexual. Dívidas bancárias ou contas secretas. Cultos invulgares. Dependências várias, incluindo o jogo. Uma doença incurável ou contagiosa. Alguém que faz parte do guião mas não consta (filho, irmão, ou até outra família). Outras “nódoas” no currículo (situações em que se foi vitima ou agressor, cadastro criminal). E há os segredos com S pequeno. Prazeres clandestinos que não são mesmo para partilhar porque sim. Coisas que seriam menos agradáveis para o outro, se as soubesse e que, por isso mesmo, nunca serão ditas, em nome da privacidade, mas também por levantarem poeira desnecessária numa relação que se quer preservar sem sensações de mal-estar desnecessárias. Um estudo realizado há três anos, pelas universidades da Carolina de Leste e de Tennessee, mostrou que a maioria dos participantes (60%) admitia ter escondido do parceiro pelo menos um segredo, em algum momento da vida. Mais: um quarto da amostra não tencionava revelá-lo. Porque o faziam? A equipa da psicóloga Beth Easterling concluiu que a omissão era motivada por medos (reprovação, perda do capital de confiança, matar expetativas do parceiro).
Desafio nº 2: Transparência total não significa mais saúde relacional
Atenção aos acordos tácitos do tipo “não há segredos entre nós” ou “a verdade é libertadora”. Querer saber tudo pode ser perverso. Contar tudo pode ser cruel. O jogo da verdade e consequência converte-se numa ilusão de intimidade ou em pretexto para legitimar situações inaceitáveis para um dos envolvidos. Vale mesmo a pena ser militante da transparência total, se o pacote estiver cheio de sabores amargos? Precisa mesmo de fazer ou pedir um raio X às “vidas passadas” que o outro/a teve antes de si? Saber coisas como “gosto de ti porque não és chata nem ciumenta como a minha ex, que hoje encontrei por acaso?” Ou ficar a par das qualidades dos antigos companheiros de aventuras da mulher com quem dorme? Ok, são testes de confiança e provas de amor, poderá argumentar. E sabe o que fazer com isso? (exemplo: aceitar as pessoas e histórias da vida de alguém e ver-se como outra entre elas?)
Desafio nº 3: O exercício da (in)sensatez
“É prudente não procurar saber segredos e honesto não os revelar”. Assim pensava Benjamim Franklin que, entre outras coisas, também era jornalista e filantropo. Se sabe, em consciência, porque esconde alguma coisa de quem mais gosta, aprenda a viver com isso, sem fazer cobranças. E não se surpreenda se, um dia, descobrir que o segredo de um é igual ao segredo do outro (ou da mesma natureza). Se, pelo contrário, entender que está na hora de abrir jogo sem que nenhuma das partes fique em posição de xeque-mate, é provável que se liberte de medos irracionais, expanda limites e a relação (de amizade ou de outro tipo) fique a ganhar com isso. Afinal, quantas vezes se priva de ser quem é diante de alguém, apenas por não acreditar que esse alguém gosta genuinamente de si? Ou por pura insegurança (em si e no vínculo que tem? Ou, ainda, por estar demasiado “aprisionado” a si (à sua privacidade e individualidade)? Na sensatez – a gestão equilibrada da polaridade – está a resposta. E cada um terá de encontrar a sua, na teia de ligações de que é protagonista.