Demoramo-nos nos preâmbulos, agora é assim – meia hora para sabermos uns dos outros (de repente, apercebemo-nos de que somos todos humanos) e dois minutos para falarmos do assunto que motivou o telefonema. Lembra os almoços de negócios dos homens importantes: duas horas a conversar sobre futebol, golfe, carros, mulheres, vinho, cabrito assado, férias no Algarve ou nas Maldivas, para, depois, à sobremesa ou durante o café, se fecharem acordos de milhões – vendas de prédios, adjudicações diretas, permutas, compras de barcos, de jogadores, de joias, etc.
Mostra-nos o tempo presente, penso eu a propósito destes telefonemas em que a saúde está em primeiro lugar, que a minha vizinha esteve sempre certa: leva uma vida a falar de doenças, maleitas e acidentes vários. Ainda há pouco mo lembrou, quando me viu passar para ir deitar o lixo ao contentor: ó vizinho, eu não lhe dizia que a saudinha é tudo o que importa? E riu-se muito, a papada vazia a abanar por debaixo dos queixos, como uma bandeira de vitória. Depois, voltou para dentro, para falar ao telefone ou fazer videochamadas com os netos que estão na Suíça. Ouço-a distintamente: a voz cansada ganha fôlego e liberta-se por entre as cortinas daquele rés-do-chão de janelas sempre abertas. Diz, muito alto (até porque os ouvidos já não funcionam como dantes, esse tempo em que tudo era bom), que nunca foi tão feliz.
De uma janela para a outra, meia hora mais tarde e já almoçado, pergunto-lhe porquê. Deu então início a um longo solilóquio – lembrou a juventude, o casamento, o crescimento dos filhos e o dia em que soube da electrocução do falecido marido, trabalhador da CP, que deus o tenha (e fez o sinal da cruz), que a deixou para sempre numa solidão maior que a América. Disse isto de olhos baixos e com as mãos secas de carnes juntinhas sobre o peito e prosseguiu: mas o corona, e quando pronunciou esta palavra como que voltou a si, o corona, vizinho, o corona fez desaparecer essa solidão. Falo com os meus netos todos os dias e até vejo as carinhas deles, coisas mai lindas. Ainda me deu conta de como na Suíça a escola é boa e as ruas são limpíssimas, não é como esta bandalheira, até que olhou para o relógio e disse que tinha de ir, que tinha que fazer, adeus vizinho.
A D. Elvira também não sabe que eu sei que ela atua diariamente na clandestinidade. Quando acaba o noticiário da hora de almoço, e já comido o cozinhado que inicia às onze e meia em ponto, sai de casa com uma discrição que não escapa ao meu ouvido e desliza até ao café. Com o nó de um dedo, bate uma vez apenas na grade – toc – e depois vira-se para a rua, receando potenciais mirones. A grade ergue-se automaticamente e pára cerca de um metro acima da calçada. A vizinha baixa-se um pouco – não é muito alta –, queixa-se das cruzes e entra no café. Não se demora mais do que um minuto e depois sai, sorrindo e lambendo os finos lábios que transportam o sabor torrado de mais uma bica tomada na clandestinidade, depois de uma videochamada para a Suíça.