A declaração de António Guterres na abertura do Conselho de Segurança das Nações Unidas procurou ponderar os dois lados de um conflito com décadas ao falar da ocupação sufocante a que o povo da Palestina está sujeito. A afirmação foi considerada escandalosa e, no dia seguinte, Guterres procurou esclarecer e confessou-se chocado com a interpretação feita das suas palavras, mas o seu papel como mediador do conflito pode estar irremediavelmente comprometido.
“As declarações do embaixador de Israel nas Nações Unidas fazem lembrar os números do Chega contra o presidente da Assembleia da República”, considerou no programa Olho Vivo desta semana Rui Tavares Guedes, diretor-executivo da VISÃO, a propósito da polémica levantada com o discurso de António Guterres. Conforme lembrou, há muito tempo que o governo israelita mantém um conflito aberto e vigoroso com as Nações Unidas, recusando-se a cumprir as muitas resoluções aprovadas contra Israel, acusando a organização de ser manipuladas pelas forças pró-palestinianas. Na sua opinião, tudo o que António Guterres disse era “factual” e, portanto, não pode ser visto como tomando o partido de qualquer um dos lados.
“Qualquer que fosse o discurso de Guterres, Israel iria sempre aproveitar a oportunidade para atiçar o seu conflito com as Nações Unidas, para poder avançar para uma invasão terrestre da Faixa de Gaza da forma que entender, sem precisar de dar explicações à comunidade internacional”, afirmou. “A verdade é que mesmo que aniquile todos membros do Hamas, Gaza não vai ficar a seguir no ‘vácuo’ de que falou Guterres”, disse. “O mais provável é que nasçam muitos outros movimentos semelhantes, porventura ainda com mais sede de vingança”.
O jornalista Nuno Aguiar considera que António Guterres “disse o óbvio e teve o mínimo de moderação”. “As declarações vão envelhecer bem. Daqui a alguns dias, à medida que as mortes palestinianas se forem acumulando e, daqui a alguns anos, quando se perceberem as consequências para a região e o mundo”, antecipa. Além das críticas às afirmações propriamente ditas, houve quem tenha achado que o secretário-geral da ONU se fragilizou enquanto mediador, hostilizando Israel. Nuno Aguiar questiona-se sobre que alternativa existia. “E se não referisse esse contexto? Como reagiriam os palestinianos? O ‘mundo árabe’? O Sul Global, onde já criticam o Ocidente por hipocrisia em comparação com a Ucrânia?”, questiona.
“António Guterres fez o que lhe competia fazer: ser imparcial. É isso a que está obrigado pelo artigo 100º da Carta das Nações Unidas, que obrigada a que um secretário-geral não tenha uma visão unilateral de um conflito ou dê vantagem a um estado”, diz Mafalda Anjos. “É preciso lembrar que o secretário-geral não representa só mundo ocidental, representa também o mundo árabe e o sul global. E não pode fazer tábua rasa das dezenas de resoluções e declarações feitas pela ONU a condenar Israel pelas suas ações contra os palestinos, a começar pela 242, de 1967, que exige a retirada das forças israelitas dos territórios ocupados na Faixa de Gaza e Cisjordânia durante a Guerra dos Seis Dias.”
Para a diretora da VISÃO, “israelitas e palestinianos são vítimas dos seus governantes”. “O Hamas é uma organização terrorista com desprezo pela vida humana, incluindo a do seu povo. Israel é uma democracia, mas Netanyahu é um político em rampa descendente autoritária. Está no poder desde 2009 e é o político que mais ficou a frente do governo israelita na história da nação, logo, é em grande parte dele a responsabilidade pelo estado de coisas que nos levou aqui”, enquadra. “A sua saída, pedida por grande parte dos israelitas, como mostram as sondagens, parece inevitável. Mas quando, e, sobretudo, depois de quantas mortes?”, questiona.
IUC, o imposto da discórdia
Em análise no Olho Vivo estiveram também as alterações ao Imposto Único de Circulação (IUC) na proposta de orçamento do Estado para 2024, uma medida que vai abranger três milhões de carros com mais 16 anos e meio milhão de motociclos. O acréscimo será limitado a 25 euros por ano, esperando-se um efeito de incentivo ao abate e uma receita extra com esta medida de pouco mais de 80 milhões de euros.
Rui Tavares Guedes considerou inadmissível que se tente mascarar uma medida puramente orçamental com a defesa do ambiente. “Isso é desperdiçar armas e argumentos para o combate mais importante das nossas vidas, que é o das alterações climáticas, em que vamos ser obrigados a contribuir todos”, afirmou. “Pior ainda é quando o Governo justifica essa medida com o da redução dos preços de portagens em algumas autoestradas. Ou seja: promovendo maior circulação automóvel e mais emissões de dióxido de carbono para a atmosfera”.
Nuno Aguiar considera que a discussão tem de ser dividida. “A medida faz sentido em teoria – porque devem os carros anteriores a 2007 pagar menos pelo que poluem? – e os impostos servem para estes objetivos”, afirma. No entanto, acha que a medida está mal desenhada e pior explicada. “Desperdiça munições na comunicação sobre alterações climáticas, porque diz que os mais pobres terão de arcar com as consequências dela. Além disso, o aumento devia ser inferior a 25 euros ao ano e deveria ser criado um mecanismo que compensasse as famílias com menos rendimentos.”
Para Mafalda Anjos, “o princípio do Poluidor Pagador faz sentido e é um dos princípios fundamentais do Direito Ambiental, porque se responsabiliza o poluidor pelas atividades lesivas do meio ambiente”. “Mas antes de penalizar os mais pobres, faz sentido que se comece pelas empresas e pelos mais favorecidos. Todos os orçamentos têm uma norma para deixar cair, e neste parece-me uma medida para deixar cair”, nota.
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