Como uma daquelas instalações gigantes de dominós, a discussão começou com uma fotografia num estádio e acabámos todos a falar de eleições antecipadas. Aliás, tem sido assim que acaba a generalidade dos debates políticos em Portugal nos últimos tempos. A ida de António Costa a Budapeste para ver a final da Taça UEFA tornou-se rapidamente numa conversa sobre a possível saída do primeiro-ministro para um cargo europeu. Fez sentido? E quem ganhou com isso?
Para a diretora da VISÃO, “esta é uma hipótese completamente em aberto que depende de muitas variáveis, nomeadamente do equilíbrio de forças políticas que sair das eleições europeias”. “Uma coisa parece-me certa: António Costa não fecha a porta, e isso fica evidente na demarcação que tentou fazer publicamente, onde não recusa liminarmente a ideia, mas diz que é o garante da estabilidade. Mas o que é estabilidade para ele?”, questiona Mafalda Anjos. Vale a pena recuar à célebre entrevista que o primeiro-ministro deu à revista VISÃO. “ Sobre concorrer a Belém, foi perentório com um literal ‘nunca, jamais, em tempo algum’, mas sobre um cargo na Europa disse que algo muito mais vago – ‘Não somos nós que escolhemos esses cargos executivos: existem ou não existem, e estamos ou não disponíveis, sentimo-nos ou não com vocação. Neste momento, tenho uma grande missão, que me ocupa bastante e me deixa totalmente realizado. Na minha vida, nunca andei a pensar no que ia fazer a seguir’”, recorda.
O jornalista Nuno Aguiar alerta que ainda estamos muito longe de podermos perceber o que irá acontecer, depois das eleições de junho do próximo ano. Não só porque num ano de governação muito pode acontecer – percebemos isso em 2023 – como porque só depois das eleições poderemos perceber a correlação de forças entre as famílias políticas europeias.
“Além disso, não entendo porque há-de a oposição querer cavalgar este tema. É um daqueles momentos em que se baixa tanto as expectativas que António Costa só teve de dar a entender que não vai para parecer um estadista responsável”, acrescenta. “Mais: ao insistir na ideia de que António Costa é um político muito desejado, isso acaba por ser um elogio para o primeiro-ministro.”
“A quem interessa esta notícia da saída de António Costa para a Europa? À oposição não é, porque passa a ideia de que ele é tão bom que o querem muito na Europa”, sublinha Mafalda Anjos, que acrescenta: “A comparação com Durão Barroso, que foi visto como alguém que abandonou o barco ao fim de dois anos, é inevitável, mas a situação é diferente. No segundo semestre de 2024 António Costa estará há 9 anos em funções – é muito tempo”.
Tiago Freire acha que se criou “um drama” com algo “que é ou devia ser normal”. “António Costa tem experiência, competência e perfil para assumir um cargo europeu. Se sair a meio do mandato, há eleições. Isso é a democracia a funcionar”, aponta o diretor da EXAME. “Ele está há muitos anos à frente do governo, não faz sentido falar em traição. Se sair, há eleições e o país cá estará, não vai acabar por causa disso.”
A atenção mediática desta semana foi dividida entre esse debate e a organização do fórum anual do BCE, em Sintra, onde Christine Lagarde se apresentou num tom pessimista, sinalizando mais subidas de juros. É que a inflação pode estar a descer, mas fá-lo de forma muito diferente de país para país e, se lhe retirarmos os seus elementos mais voláteis, ela mostra-se mais resistente.
Nuno Aguiar considera que se devem separar os dois debates: uma coisa é saber se os juros devem subir mais; outra é a forma como os responsáveis do BCE comunicam. Em específico as suas recomendações sobre a necessidade de restringir as medidas de apoio às famílias e os aumentos salariais dos trabalhadores. “O mandato do BCE é exclusivamente a estabilidade de preços. Mas os governos também têm de fazer o seu trabalho. De preferência não contrariando a política monetária. Mas é insustentável para qualquer governo – ainda mais em países sem controlo da sua política monetária – aceitar que a sua população tenha perdas brutais de poder de compra sem atuar. Rapidamente deixaria de ser governo”, explica o jornalista de economia. “Também é difícil aceitar que as empresas conseguiram aumentar mais os seus preços em 2022 e que agora os trabalhadores têm de se contentar com aumentos salariais mais contidos. É como dizer a duas crianças que havia sobremesa para depois do jantar, mas como uma já comeu tudo, a outra não vai poder comer.”
Para Mafalda Anjos, “as declarações de Lagarde são de enorme insensibilidade política e social”. “Numa altura destas vir pedir aos Governos para acabar com apoios e às empresas para não aumentar salários é muito mal entendido pelas pessoas e dá argumentos a todo o tipo de populismos para cavalgar a onda de descontentamento não só contra ela e o BCE, mas também contra a própria subida das taxas de juro”, afirma.
“O que o BCE e a senhora Largarde nos dizem é que temos de sofrer, sofrer, sofrer, com juros mais altos e com salários que, no seu entender, não podem subir. Estão a mandar toda a gente aguentar e dormir no chão, o problema é que o chão dos alemães é mais fofinho que o nosso”, frisa Tiago Freire. “Acho que há uma grande inabilidade na comunicação. Os banqueiros centrais passaram de falar pouco, há uns anos, para falarem em qualquer inauguração de um stand, hoje em dia.”
As declarações da líder do BCE motivaram uma série de reações de responsáveis políticos portugueses, incluindo o ministro das Finanças e o Presidente da República. “Não deixa de ser curioso ouvir Marcelo Rebelo de Sousa, que no passado já fez declarações sobre subidas dos juros que o Governador do banco de Portugal teve de vir esclarecer e explicar, a pedir agora para ‘cuidado’ e ‘grande ponderação’ e acabar a dizer ‘não queria eu próprio fazer aquilo que acho que não é uma boa ideia fazer’”, lembra a diretora da VISÃO.
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