Sempre que Cavaco Silva sai do seu silêncio quase sepulcral e fala, as hostes agitam-se, tanto à esquerda como à direita. E esta semana, Cavaco Silva publicou um surpreendente – e, como sempre, polémico – artigo de opinião, quatro meses depois da conquista da maioria absoluta e dois meses depois de António Costa lhe atirar uma bicada no discurso de tomada de posse.
“Cavaco Silva foi Primeiro-Ministro durante 10 anos, teve duas maiorias absolutas, Presidente da República por duas vezes, tem um lugar importantíssima na história democrática das últimas décadas em Portugal. Por isso, quando escreve, deve ser escutado. Há oito meses já tinha feito duras críticas a António Costa. Mas desta vez o tom é diferente. E a primeira coisa que me perguntei foi quem tinha sido o ghost writer do texto. O tom não é o de Cavaco Silva… contempla ironia e quase um certo humor de estilo inglês de que é completamente desprovido. Chega a ser divertido”, diz Mafalda Anjos.
Filipe Luís concorda: “Uma coisa é certa: este artigo assinado por Cavaco Silva, não terá sido escrito por ele. Não é o seu estilo nem o seu humor e, definitivamente, Cavaco não possui aquela “ginga” estilística e discursiva”.
O estilo sarcástico não é normalmente aquele que associamos a Cavaco Silva, mas as intenções não ficam escondidas. “A política portuguesa tem muita performance. Aquilo é genuíno: Cavaco Silva despreza politicamente António Costa. Não consegue ultrapassar a humilhação da Geringonça, um certo desprezo entre as elites e alguma falta de carinho”, aponta o jornalista Nuno Aguiar. “Em relação ao conteúdo, Cavaco Silva fala de outro tempo. A democracia portuguesa ainda não estava amadurecida, havia matérias centrais, de modernização institucional e económica que mereciam amplo consenso. À medida que o sistema político amadurece, é normal que os partidos se comecem a distinguir e a afastar-se mais.”
Do texto sobressaem factos relevantes. “Sempre que emerge das profundezas, Cavaco Silva agita as águas políticas e marca a agenda. Foi o seu artigo sobre a boa e a má moeda que deitou abaixo Santana Lopes… Desta vez, omitindo o que foi o lado negro e arbitrário das suas maiorias, tem razões nalguns pontos, no que diz respeito à capacidade de diálogo: acordos históricos de concertação social e uma importante revisão constitucional acordada com o PS. Há ainda reformas, de que fala no artigo, económicas ou fiscais que, embora contestadas, ao tempo, pelo PS, foram depois tacitamente aceites por cinco governos socialistas posteriores, que nunca as reverteram”, explica Filipe Luís.
Ainda assim, há no texto “um olhar enviesado”, o que “é normal, é Cavaco a avaliar-se a si próprio”, defende Mafalda Anjos. “É um interessante exercício de memória seletiva. É claro que o país progrediu muito, mas é curioso ver Cavaco Silva a apresentar-se como dialogante, quando sabemos que não foi propriamente o bastião do diálogo, da cedência e do compromisso. Quando fala da Lei de Bases da Reforma Agrária, que o seu governo aprovou, esqueceu-se foi de dizer que foi neste tempo que encolheu a nossa capacidade produtiva agrícola e de pescas e que a nossa dependência alimentar do estrangeiro aumentou. Quando fala da Lei de Bases da Saúde, que é verdade que foi muito importante, esquece-se de dizer que o PSD tinha votado anos antes contra o SNS e muito poderia ter feito mais para o desenvolver neste período. Não fala da corrupção, dos processos judiciais, dos atrasos”, diz a diretora da VISÃO.
Qual é a importância do artigo? “Ele só ganha relevância porque existe um vazio na oposição ao Governo”, refere Nuno Aguiar. “Talvez valesse a pena que a participação cívica do ex-Presidente não se limitasse a artigos de opinião críticos e fosse até mais presente.” Mas Cavaco Silva não resiste e “é incapaz de resguardar a sua posição institucional de ex-Presidente, acima da trica política. Nesse aspeto, Sampaio foi ‘um senhor’. Eanes é ‘um senhor’. E Cavaco não”, diz Filipe Luís.
Esta semana aconteceu também a eleição do novo líder do PSD, outro tema em análise no Olho Vivo. Luís Montenegro ganhou por muito entre os poucos que votaram – a abstenção foi quase de 40% e o seu resultado chegou aos 73%.
“Uma coisa é certa: o ponto de partida é muito fraco, e por isso não será difícil de fazer melhor do que Rui Rio, que foi errático e ideologicamente ziguezagueante e não conseguiu fazer uma oposição consistente. Mas o problema é perceber qual é o plano de Montenegro não só para o País, como para o próprio PSD. Que espaço vai ocupar e ao que se propõe? É preciso ideias claras e não basta dizer que é a alternativa não-socialista”, diz Mafalda Anjos.
“A estratégia de congregar o espaço não socialista pretende fazer despertar o PSD, que anda amorfo. Mas as eleições ganham-se ao centro (que também vota PS). Rui Rio tentou fazê-lo, dizendo que PSD não era de direita – e perdeu votos à direita sem os ganhar à esquerda. Ao menos, Luís Montenegro tem um ponto de partida muito mais claro. Introduzindo alguma ‘vocalidade’ no estilo de fazer oposição Luís Montenegro vem retirar espaço, protagonismo e ‘chão’ a André Ventura”, analisa Filipe Luís.
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