A crise inflacionária que assola o mundo desde o final de 2021, com especial gravidade desde a invasão russa da Ucrânia, fez-nos recuar 50 anos para as discussões macroeconómicas da última grande crise inflacionária – a dos anos 70 do século XX. Esta é ocasião para atualizar as lições desse período e construir políticas à medida da economia contemporânea.
Depois dos chamados “trinta gloriosos” em que o mundo testemunhou crescimento económico significativo e estável, verificou-se, como hoje, uma sequência de inflação e estagnação – “estagflação”. Essa crise, na sua dupla componente crescimento-inflação, demorou mais de uma década a resolver entre austeridade, subidas de taxas de juro, repressão sindical e estabilização geoeconómica. Todavia o seu grande legado foi um novo consenso de pensamento económico, que renunciou à doutrina keynesiana de gestão da procura por via da política fiscal e adotou uma visão económica neoliberal, com preferência pela política monetária e pela gestão da oferta (para a qual preconizavam a desregulação, privatização e o choque fiscal).
Meio século depois, a pandemia e a guerra transtornaram cadeias de abastecimento de diversos bens intermédios – desde chips a cereais, metais a combustíveis – levando a crescentes subidas de preços. Ao contrário de então, os salários não têm contribuído para a inflação – pelo contrário, crescem menos do que os preços – e, mesmo para estas matérias-primas, está em vista a resolução da sua maior escassez – os preços do petróleo, aço e bens alimentares já baixaram para níveis pré-guerra. É expectável, porém, que demore algum tempo até os preços normalizarem – afinal, sendo produtos intermédios, a sua incorporação dura todo o ciclo de produção e distribuição dos produtos finais. Tal justifica o receio de governos por todo o mundo de uma inflação mais duradoura do que esperado e a hesitação em aumentar rendimentos, que podem dar pretexto para contaminar mais ciclos produtivos com uma nova febre inflacionária.
Se os governos têm adotado uma postura de “esperar para ver” (ainda que com pensos rápidos para os mais vulneráveis), os bancos centrais – a começar pela Reserva Federal dos EUA – têm sido mais agressivos, com as maiores subidas de taxas de juro das últimas décadas e o fim, ou mesmo reversão, dos programas de compras de ativos, geralmente conhecidos por “quantitative easing”. Ainda que esta seja a receita ortodoxa para conter subidas do nível de preços, a sua eficácia no atual contexto é questionável.
Esta é uma crise de oferta – um choque contracionista temporário na oferta de certos bens. Subir a taxa de juro – o preço do dinheiro – melhora a remuneração da poupança e encarece o crédito, desincentivando o consumo e o investimento. Há menos dinheiro à procura desses bens escassos, logo deve haver menos inflação. Porém, isso não funciona com bens inelásticos, cujo volume de consumo varia pouco em função do preço. É o caso dos bens alimentares e energéticos, os 2 grandes motores da inflação. Fica, pois, claro: esta crise de oferta ‘micro’ não terá uma solução ‘macro’ do lado da procura.
Esta subida da taxa de juro tem outras consequências bem mais reais. A primeira é de contágio – um banco central que queira resistir a essa política veria um êxodo de capital para divisas que remunerem melhor, desvalorizando a moeda e encarecendo, assim, as suas importações. A inércia importa inflação, como o Euro viu durante os últimos meses, com a cotação face ao dólar a cair 10,5% desde o início do ano.
A segunda é de fragmentação dos mercados. Como nem todos poderão suportar pagar juros mais altos, os investidores vendem títulos de maior risco. Isso já levou a uma subida das taxas de juro a que se financiam vários países do sul da Europa, especialmente a Itália (cujas taxas de juro subiram 167 pontos base desde o início do ano), e à criação do mecanismo anti-fragmentação do BCE. Se bem que desta vez o BCE antecipou-se a qualquer quebra de financiamento a um país, a sua resposta é, em certa medida, pior que o “Draghi put”. Enquanto esse faria “tudo o que fosse necessário” para salvar o Euro, o atual “instrumento de proteção da transmissão” tem associadas condições de cumprimento das regras orçamentais e macroeconómicas que nos deixam na mão de Bruxelas e Frankfurt.
A terceira é recessiva. É certo que um dos objetivos da subida de taxa de juro é arrefecer a procura, mas a intenção é sempre “aterrar” a economia numa “pista” com crescimento económico. Se acabarmos numa recessão, Lagarde poderá ter de enfrentar a mesma sina que o anterior francês a liderar o BCE – Jean Claude Trichet – que subiu as taxas de juro em 2008 e 2 vezes em 2011, apenas para as ver baixar de novo meses depois.
Os sinais de alarme de uma recessão são já claros. Os Estados Unidos poderão estar já em recessão, segundos dados preliminares recentemente lançados. O Banco de Inglaterra prevê uma recessão a começar no 4.º trimestre e a durar até ao final de 2023. Na Alemanha, o clima económico afundou drasticamente. Portugal parece para já poder conseguir fugir à recessão técnica, em parte graças à ajuda do turismo. Todavia, como um buraco negro, a recessão, a chegar, engolir-nos-à a todos. Ela terá essencialmente três frentes:
- O arrefecimento económico global reduzirá a procura externa dirigida à economia portuguesa, travando as exportações.
- Os rendimentos não subirão tanto quanto os preços e as poupanças pandémicas não durarão para sempre, o que inevitavelmente forçará as famílias a cortar o seu consumo.
- A subida das taxas de juro será um esforço adicional no orçamento de muitas famílias e empresas endividadas, prevendo-se um aumento do incumprimento no crédito.
Perante isto, a questão é: o que devem os governos fazer? Começa-se por contrapor o choque contracionista da oferta com políticas expansionistas também do lado da oferta. Isso está já a ser feito, por exemplo nas energias verdes. Contudo, à medida que a inflação contamina outros ciclos produtivos, também os incentivos à produção devem-se alargar a mais setores. Estas políticas demoram, no entanto, ainda algum tempo a surtir efeito.
No entretanto, teremos que escolher se queremos uma política fiscal restritiva (ou “neutra”) focada no combate à inflação, ou se queremos prevenir ou mitigar uma eventual recessão, com políticas de rendimento que preservem o poder de compra e programas de investimento público expansionistas.
Os advogados da primeira opção falarão da ameaça de uma espiral inflacionária no nexo preços-salários, como sucedeu nos anos 70. Mas já não estamos nos anos 70. Os sindicatos (infelizmente) não tem hoje a mesma força para obter subidas salariais acima da inflação e os salários já não têm, (felizmente) graças às novas tecnologias, tanto peso na estrutura de custos das empresas. Ainda assim, a política de rendimentos deve ser cuidadosamente calibrada, no sentido de repor o poder de compra ou orientar a procura para produtos menos escassos.
Outro argumento instrumentalizado para se oporem à política de rendimentos são as “contas certas”. Elas serão, de facto, mais importantes do que nunca para provar a nossa resiliência a um novo endurecimento das condições de mercado. Um passo em falso pode levar as taxas de juro da República a disparar. Como bem vivenciámos entre 2011 e 2015, a banca e, consequentemente, o acesso a financiamento das empresas e famílias seriam os próximos sacrificados.
Todavia, não podemos nem sobrestimar os custos dessa política de rendimentos, nem subestimar os prejuízos de não a fazer. As taxas de juro já estão a subir para as empresas e famílias. Esses rendimentos, porém, existindo ou não, influenciarão as receitas fiscais e as despesas sociais (os chamados “estabilizadores automáticos”) e, naturalmente, o PIB, o que se traduz também no peso do défice e da divida. Foi, aliás, essa estratégia de valorização dos rendimentos que deu tamanho bom resultado na consolidação das contas públicas desde 2016.
Prevenir ou mitigar uma eventual recessão é de especial importância no atual contexto histórico. Uma recessão não só seria uma tragédia social para os mais pobres, como atrasaria, irreparavelmente, tanto as transições climáticas e digitais como a execução do PRR. Esse é um risco que simplesmente não podemos correr.
Olhando, portanto, para as circunstâncias específicas da nossa economia e desta crise, as respostas não podem ser as mesmas dos anos 70. Com ou sem inflação, a política fiscal deve fazer contraponto à política monetária restritiva, procurando manter o poder de compra e a atividade económica em volume. A essa política macro do lado da procura tem de se juntar, evidentemente, outras iniciativas para promover o crescimento do lado da oferta.
Assim, poderemos converter a estagflação num novo período de crescimento sustentado e preços moderados. 50 anos depois, o debate económico é outro e é caso para dizer – volta Keynes, estás perdoado.
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