A morte não deixou de sair à rua com a Revolução de Abril de 1974. Há quarenta anos, na madrugada que dobra o mês de abril, dois jovens portuenses sucumbiram às mãos de uma das mais violentas intervenções policiais ocorridas em democracia.
Mário Gonçalves, com dezassete anos, e Pedro Vieira, sete anos mais velho, são assassinados a tiro pelo Corpo de Intervenção da PSP mobilizado a partir de Lisboa pelo Governo da Aliança Democrática liderado por Francisco Pinto Balsemão. Pedro Vieira é atingido pelas costas quando à saída do cinema se vê obrigado a fugir da carga policial. Mário Gonçalves, convalescente, é alvejado na cabeça. Estas são as conclusões do inquérito levado a cabo pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Não foram suficientes para que a justiça (possível) fosse aplicada.
Chegados ao nono Dia Internacional do Trabalhador celebrado em democracia, o ambiente contrasta profundamente com a esperança que emanando da Revolução marca este primeiro dia de maio nos imediatos anos que lhe seguem. O FMI regressa a Portugal pela mão do governo do Bloco Central pouco mais de um ano depois, Sá Carneiro primeiro e Pinto Balsemão e Mário Soares depois asseguram a consagração legal da reversão de um conjunto de direitos dos trabalhadores conquistados durante o período revolucionário de 1974-1975.
Sob o manto da flexibilização, da consolidação e da convergência europeia a austeridade arrasa o País. No parlamento, Salgado Zenha descreve a política económica do Governo como um “fascismo económico de fachada liberal”.
Estamos em fevereiro de 1982 e a CGTP-IN convoca a primeira Greve Geral em democracia. A UGT demarca-se e alinha com o governo da Aliança Democrática numa profunda ofensiva contra a luta organizada dos trabalhadores. Ângelo Correia, Ministro da Administração Interna, alimenta a tese da insurreição: a CGTP e os trabalhadores que aderem à Greve formam parte de um “plano subversivo e desestabilizador tendente a alterar a ordem democrática”, à polícia chegam documentos do MAI que descrevem a ação sindical como uma “perigosa manobra golpista contra a democracia”.
A criminalização do movimento sindical é uma realidade, as cargas policiais frequentes. O que acontece no Porto na madrugada do primeiro de maio de 1982 começa por ser mais um episódio provocatório levado a cabo pelo Governo e a UGT. Contrariamente ao que desde a Revolução de Abril acontecia, o Governo Civil do Porto presidido por Rocha Pinto, militar na reserva próximo do CDS-PP, recusava à CGTP a normal requisição da Praça Humberto Delgado nos Aliados para a celebração do Dia do Trabalhador. Acontece que a UGT, procurando conquistar à Intersindical o direito de celebrar o 1º de maio na mais central zona da cidade, tinha dado entrada com pedido semelhante ainda em abril de 1981, ainda antes da celebração do ano anterior.
A CGTP-IN mantém o seu habitual programa em torno da Avenida dos Aliados. Governo e UGT acentuam a narrativa anti-sindical, Torres Couto apressa-se a quase premonitoriamente culpar a Intersindical por eventuais agressões e confrontos, Ângelo Correia envia para o Porto reforços do Corpo de Intervenção da PSP. Magalhães Teixeira, o responsável policial pela operação, dirá mais tarde que o objetivo passava exclusivamente por “limpar todo o local dos manifestantes que procuravam contrariar a realização do espetáculo da UGT”. Assim foi. Facilmente controladas algumas escaramuças ao longo das primeiras horas da noite, o que acontece a seguir faz-nos recuar 20 anos às cargas policiais com que o regime fascista procurou desmobilizar as lutas que tomaram lugar durante o 1º de maio de 1962.
Os testemunhos impressionam pela violência totalmente gratuita que relatam. Por volta da meia-noite, a polícia entra a matar. Armados com bastões e com G3, varrem toda a Avenida dos Aliados e zonas envolventes. “Como cowboys no Farwest” descreveu o jornalista Carlos Magno que soube, por fonte policial, que os “jornalistas comem como os outros”. Alfredo Mourão do jornal A Capital relata: “No local onde fui ameaçado outros eram agredidos da forma mais estúpida e brutal, como não recordo ter visto antes do 25 de Abril”. Maximina da Conceição, de passagem pelas Urgências do Santo António, lembra: “a dada altura entrou um grupo de polícias no serviço de urgência e um deles começou a bater com o cassetete nas pessoas que ali estavam (…). Foram precisos vários médicos e enfermeiros para acabar com a violência”. José Alberto Magalhães recorda um aviso que se revelou fatalmente certeiro: “ou a Praça fica limpa ou ainda hoje há mortos”. Relatos como estes multiplicam-se[1].
A investigação levada a cabo pela PGR é igualmente reveladora nas suas conclusões. Refere o relatório: “[os polícias] agrediram indiscriminadamente todas as pessoas que se encontravam à sua frente (…) quer arremessassem pedras ou nada fizessem; quer fossem em fuga ou simplesmente estivessem paradas”. Dois jovens morreram, centenas de pessoas ficaram feridas, entre estes contam-se várias pessoas baleadas.
Nas ruas, a reação dos trabalhadores é célere. Milhares de trabalhadores acorrem às ruas do Porto para um Dia do Trabalhador marcado pelo luto, a raiva e a frustração. Quatro dias depois, a cidade do Porto assiste a uma manifestação pública a fazer lembrar a passagem do General sem Medo pela cidade: o cortejo fúnebre de Pedro Vieira e Mário Gonçalves é acompanhado de perto por dezenas de milhares de pessoas. Torres Couto, secretário-geral da UGT, referir-se-á a tal acontecimento como uma “passeata de caixões pela cidade”. A 11 de maio uma Greve Geral convocada pela Intersindical assinala a morte de mais duas pessoas às mãos do Estado português isto depois das mortes provocadas pela polícia nos anos imediatamente anteriores em Custóias, no Escoural, em Lisboa ou em Montemor-o-Novo.
Para o fim do aceso debate parlamentar que discutiria este acontecimento, Carlos Brito do Partido Comunista Português pede a palavra para uma curta intervenção que nos parece interpelar. Respondendo a um deputado do PSD, o comunista refere que, pouco saindo daquele debate, para os vindouros ficará para sempre plasmado em Diário da Assembleia da República “um belo exemplo de onde mora o ódio de classe que leva ao que aconteceu no Porto”.
Traços largos, é também este o objetivo do presente texto. O de recordar que episódios como este não findaram com a queda da ditadura e tem necessariamente de fazer parte da história do nosso regime democrático. Esta é uma de entre as milhares de histórias que, por todo o mundo, pesam sobre um dia como este. É uma recordação mais de que, longe das ideias de consenso e unanimidade com que a tentam anestesiar, a democracia é uma disputa permanente entre interesses opostos. Há 40 anos, dois de nós perderam a vida.
[1] Estes e outros podem ser consultados no “Livro Branco – Maio 1982 Porto” editado pela CGTP-IN.
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