A sociedade hegemônica promove uma forma de ser que, para quem existe nas margens desta convencionalidade, impõe necessariamente a questão de como se fará essa relação: através da adoção dessa norma ou da sua rejeição. O conceito de assimilação cultural descreve o processo em que uma dada cultura absorve, ou assimila, as características culturais de outra. Este termo começou a ser empregue com os primeiros estudos académicos norte-americanos sobre imigração e raça que procuravam entender os processos culturais que eram evidentes na metamorfose dos imigrantes. Autores da Escola de Chicago, como Robert Ezra Park repararam que estes imigrantes iam progressivamente perdendo a sua identidade cultural em detrimento de uma identidade americana. [1]
Esta designação começou a ser criticada pelo seu etnocentrismo, uma vez que surgia para explicar esta deslocação predominantemente europeia para os Estados Unidos, alheando-se dos processos que tinham acontecido com as comunidades indígenas e africanas através de longos processos de violência imperialista.
Outro momento importante para pôr em causa este conceito prende-se com a globalização, consequentemente a redução de fronteiras económicas e a omnipresença de marcas visando fortalecer o neoliberalismo global, através da imposição de modelos relacionais e de comércio.
Apesar de tudo, o termo foi largamente criticado por não conseguir capturar a complexidade e pluralidade das relações sociais e culturais, negando que o intercâmbio cultural é um processo fluido e não necessariamente unidirecional, cujo impacto também é sentido nos países para os quais os imigrantes se deslocam. Este intercâmbio, embora existente, reproduz relações de desigualdade.
Na História Portuguesa sempre se tentou contar uma narrativa de igualdade e intercâmbio mútuo. Deu-se a essa história o nome de luso-tropicalismo, que passaria a supor a existência duma civilização original que adveio da expansão portuguesa e do modo particular dos portugueses no relacionamento com outras culturas. Esta teoria foi aproveitada pelo regime autoritário português do Estado Novo para defender o Império Colonial, sobretudo contra as pressões externas.
Não é possível abordar a questão do luso-tropicalismo sem tratar da vida e da obra de Gilberto de Mello Freyre. Durante a sua vida, este autor esteve envolvido na defesa da manutenção da solidariedade entre os países lusófonos, o que era muitas vezes interpretado como uma apologia ao colonialismo português do período salazarista. A relutância inicial em aceitar as ideias de Freyre foi ultrapassada pela necessidade de justificar a realidade nacional num contexto nacional cada vez mais inquieto e num contexto internacional cada vez mais crítico da manutenção colonial portuguesa. O governo colonial utilizou este conceito para apregoar a convivência pacífica entre indígenas e colonizadores portugueses convidando, nomeadamente, Freyre a viajar no que era considerado na altura o Império Ultramarino português, de modo a espalhar esta redefinição de Nação. O sociólogo continuou a defender a existência de uma “irmandade lusófona”, mesmo quando confrontado com a eclosão das guerras coloniais.
Apesar da larga aceitação na época da teoria luso-tropicalista, esta foi alvo de críticas, que se concentraram nos seus pontos mais frágeis. Um dos primeiros críticos, Mário Pinto de Andrade, ter-se-á naturalmente relacionado com as largas generalizações a que a teoria apelava e, igualmente, ao facto de não haver provas empíricas para justificar a ausência de preconceito racial nos colonizadores portugueses. Também estabeleceu uma grande crítica à miscigenação, conceito central na teoria luso-tropical para justificar os modos de boa convivência entre colonizados e colonizadores, referindo que a maioria destas relações foram fruto de relações extraconjugais que não resultaram em benefícios sociais para as mulheres ou comunidades em questão. Desta forma, as sociedades das colónias portuguesas eram patriarcais, não igualitárias e estratificadas social e racialmente e, ao contrário da crença luso-tropicalista, não terá havido um regime de transformação cultural recíproca, mas antes uma apropriação cultural por parte dos colonizadores.
As ideias de Freyre, por melhor que tenham sido refutadas, persistem na sociedade portuguesa. Primeiro, refletem a construção deliberada de um imaginário nacional, contextualizando a crença na excepcionalidade da sociedade portuguesa como imune ao racismo e promotora de boas relações interculturais. Este entendimento social é pertinente nas discussões sobre imigração, integração, racialização na nossa sociedade.
“Como afirmam Fonseca et al. (2002), os países da Comunidade de Língua Portuguesa representam 55.4% do total de residentes estrangeiros legalizados em Portugal o que “sugere que até ao final dos anos 90, a imigração para Portugal estava intimamente ligada ao passado colonial do país” (p. 138).” [2]
A política xenófoba e racista promovida pela extrema-direita continua a explorar e a defender estes mitos como naturais e como verdades históricas. A direita europeia muitas vezes não se opõe diretamente a nenhuma etnia nem usa tão flagrantemente um discurso xenófobo, mas utiliza um discurso que apela à manutenção da identidade nacional.
“Identidade nacional deverá guiar franceses na eleição presidencial”- Marine Le Pen, antes das eleições em 2017 [3]
Esta argumentação visa influenciar de modo negativo as atitudes dos eleitores face aos direitos dos imigrantes, como o direito ao voto, o direito à nacionalidade ou ao reagrupamento familiar, bem como em argumentos para a repatriação de imigrantes, tais como a criminalidade e o desemprego.
Nalguns casos os imigrantes são tolerados. Em Portugal são vistos favoravelmente, encarados como trabalhadores que efetuam o trabalho que os portugueses não querem fazer. Se não incomodarem, se não demonstrarem demasiado a sua cultura, a sua língua, a sua história, se não ocuparem espaço, são tolerados. Esta imposição natural de assimilação cultural justificando as refutações contra o racismo estrutural com o intercâmbio cultural que existe é ainda parte da nossa herança colonial.
O problema é que, após 500 anos da violência da política colonial e a sua manutenção até à atualidade, estamos fartos de não ocupar espaço.
[1] Assimilação cultural. InfoEscola. (2022). Retrieved 14 February 2022, from https://www.infoescola.com/sociologia/assimilacao-cultural/.
[2] Eg.uc.pt. (2022). Retrieved 14 February 2022, from https://eg.uc.pt/bitstream/10316/84184/1/Luso-tropicalismo%2C%20acultura%C3%A7%C3%A3o%20e%20atitudes%20face%20%C3%A0%20imigra%C3%A7%C3%A3o.pdf.
[3] On, R. (2022). Identidade nacional deverá guiar franceses na eleição presidencial | Semana On. Semanaon.com.br. Retrieved 14 February 2022, from https://www.semanaon.com.br/conteudo/5685/identidade-nacional-devera-guiar-franceses-na-eleicao-presidencial.
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