No contexto da profunda recessão económica da crise petrolífera dos anos 70, a que se somaram especiais preocupações ambientais, um engenheiro da NASA, Jack Nilles, propôs a primeira configuração de teletrabalho, de modo a contrariar o congestionamento nos grandes centros urbanos.
Nilles sugeriu então a pulverização das empresas por escritórios satélite, mais próximos das residências dos trabalhadores, nos quais estes pudessem trabalhar remotamente. Sempre que a sua presença física não fosse absolutamente imprescindível nos centros das empresas, os trabalhadores poderiam estar nesses espaços, evitando-se deslocações desnecessárias e reduzindo-se o trânsito nas grandes cidades.
A par deste impacto ambiental positivo do teletrabalho, escusado será enumerar o leque das muitas outras vantagens do teletrabalho. Este texto não procura ser uma ode aos seus benefícios na óptica do trabalhador, das empresas e da sociedade em geral. Em 1973, Nilles não previu naturalmente o teletrabalho enquanto resposta a uma pandemia, nem que viesse a ser imposto de forma anómala e acumulada com um confinamento que arruinou pela base o tão apregoado work life balance.
Mas a imprevisibilidade da pandemia, enquanto pressuposto desta reorganização do trabalho, não justifica a inércia legislativa e governamental em que se atolou o actual modelo: em 2021, 48 anos volvidos da proposta que pretendia reinventar o trabalho, 17 meses após sucessivas e fortes restrições, em que o trabalho invadiu as casas de quem trabalha, não há uma única alteração legal e regulatória que corrija alguns evitáveis, mas graves, desequilíbrios sociais económicos e que sirva os trabalhadores e as empresas.
É evidente, já se sabia, que o regime legal pré Covid-19 se encontra totalmente datado. Apesar disto, continua em vigor, desprotegendo trabalhadores e defraudando qualquer tentativa de planeamento de empregadores.
Os conspiracionistas e negacionistas dirão que tudo se deve ao desejo de desregulação do grande capital. Porventura desconhecem que uma das forças maiores para ausência de qualquer protecção legal adicional é movida pelas centrais sindicais. Sob o pretexto de que não se deve legislar neste contexto excepcional – ignorando, portanto, a necessidade imperiosa de fixar disposições sensatas entre empregadores e trabalhadores – os sindicatos portugueses preferem deixar sem aparo uma franja muito expressiva e cada vez mais larga de trabalhadores – os que apenas têm como instrumentos de trabalho o computador e o telemóvel.
Esta tendência sindical, de resto bem portuguesa, de aversão à mudança laboral e de receio de perda de força (a que resta) nos meios tradicionais é um dos maiores paradoxos de quem procura representar os trabalhadores: o seu imobilismo, resultante da tentativa desesperada de conservar um modelo que outrora vingou, quando os meios de produção e a estrutura económica eram outros, tem nos próprios trabalhadores as maiores vítimas.
A inoperância que ditou a defesa dos interesses do trabalho, nos últimos dois anos, foi mais um sinal dos tempos. Os valores recordes de desemprego, com especial incidência nos mais jovens (um pico de 26,3%), os 845 mil trabalhadores em layoff, as 110 mil empresas com quebras de facturação e abrangidas por apoios sociais (demonstrados nos dados da Segurança Social) não mereceram mais do que um modesto protesto sindical. Numa sociedade dinâmica e independente, a actuação sindical teria um papel decisivo na construção de políticas públicas.
Aliás, o silêncio das associações de trabalhadores quanto a desejáveis planos de formação profissional, que acompanhassem os trabalhadores em layoff, sendo uma oportunidade perdida para estes apostarem nas suas qualificações num período prolongado em que não podiam trabalhar, foi mais uma manifestação disto mesmo (apenas 1,25% dos trabalhadores cobertos pelo apoio foram incluídos em planos de formação).
Não é admissível a recusa de rápida e urgente de regulação do teletrabalho quando: 1) o cenário de manutenção de obrigatoriedade do teletrabalho é imprevisivelmente incerto e, por isso, expectavelmente mais duradouro; 2) centenas de milhares de trabalhadores continuam sem garantias que compensem as suas despesas com energia, dispositivos e serviços básicos (caso da internet) por conta própria; 3) a ausência de relação pessoal entre quem coopera associada à dessocialização do trabalho são reais; 4) o elevado número de horas de trabalho diário está a resultar no aumento expressivo do risco deansiedade, depressão e em casos burnout dos trabalhadores, sem que se concretize o direito à desconexão.
Da parte do Governo os intentos revelaram-se num patusco “Livro Verde”. Dos seus fiéis escudeiros à esquerda, vemos, no PCP, a habitual visão reaccionária face à realidade e seu progresso e, no Bloco, o também vulgar vazio de protestos inconsequentes. Na Assembleia da República, desde Março, foi apresentada uma dezena de propostas sobre a questão. Contudo, possivelmente porque foi mais urgente, entre outras “urgências”, debater o estatuto do Sahara ocidental, não é expectável que tenhamos novidades antes de Outubro.
À direita o caminho podia ser mais promissor, como é exemplo a política popular e atenta do Governo conservador britânico, que tomou as rédeas do tema, dialogou com parceiros sociais e apresentou orientações claras de um modelo para presente e futuro, mesmo com a sua famosa política de desconfinamento e de reabertura da economia.
Entre nós, apenas nos valem alguns exemplos do lado dos empregadores, como é o sucesso das seguradoras que não esperaram pelas demoradas iniciativas legislativas para fazer a justa e necessária na sua política de recursos humanos: apoiar os seus trabalhadores com subsídios regulares, promover adaptações consideráveis aos planos de carreira dos seus colaboradores e projectar expectativas razoáveis quanto à forma de trabalhar no pós-pandemia.
Numa era de mudança, onde as prioridades e as preocupações de quem trabalha, no mundo real, não se compadecem com “gangas ideológicas”, nem com agendas partidárias, este é o tempo que exige uma resposta sindical consequente, lúcida e absolutamente combativa, pelos interesses de milhões de trabalhadores. Resta saber se as actuais estruturas sindicais estão à altura. Da CGTP, desde o PREC, nada se espera. E das outras expressões sindicais? O que podemos e devemos esperar?
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