Há 35 anos, fazia capa, no jornal Los Angeles Times, a notícia It’s True: Milli Vanilli Didn’t Sing (É verdade: Os Milli Vanilli não cantam). Seguiram-se processos judiciais a reclamar a devolução do valor pago pelos CD e bilhetes de concertos. O Grammy para Melhor Novo Artista de 1990 foi revogado. A editora Arista Records eliminou do seu catálogo os álbuns. Para quem já não se recorda ou ainda não ouvia música, o dueto alemão acumulou sucessos como Girl You Know it’s True, mas num concerto, um problema no sistema de som repetiu vezes sem conta o mesmo verso, desmontando a trapaça. Tinham estilo, eram peritos na sincronização labial, mas não cantavam… ou não cantavam suficientemente bem para a sua voz ser um hit. Foi um escândalo. A imitação, o logro, criou um momento Milli Vanilli. A autenticidade é um bem valioso… Ou era.
Este verão, os Velvet Sundown foram um êxito nos serviços de streaming, com mais de 900 000 ouvintes mensais no Spotify. Surgiram em junho, e em julho já a revista Rolling Stone publicava um artigo a confirmar que se tratava de músicas geradas por Inteligência Artificial. Mas ao contrário do que aconteceu há três décadas com os Milli Vanilli, as músicas continuam disponíveis nos serviços de streaming. Na bio, disponível no Spotify, passou a constar que é um “projeto de música sintética, guiada por criatividade humana”…
Na verdade, é um projeto muito lucrativo dos novos parasitas da música. Não são artistas, mas, com algoritmos e sem autorização dos artistas, utilizam o esforço criativo alheio para criar réplicas do que já foi inventado. O fenómeno está incontrolável.
De acordo com os serviços de streaming, mais de 30 000 novas “músicas” criadas usando a IA são todos os dias ali partilhadas. Os parasitas mais sofisticados criam bots para ouvir estas “músicas” e, assim, receberem royalties. Recorde-se que o streaming partilha entre todos os artistas as receitas, conforme o número de audições. Audições falsas ou mesmo verdadeiras de músicas criadas por IA canibalizam as receitas dos artistas. Spotify e outros serviços de streaming estão a utilizar ferramentas para detetar e retirar estas faixas (embora aparentemente não todas, dado que Velvet Sundown continua disponível). Mas nada impede que músicas geradas pela IA continuem a aparecer no seu feed, sem estarem identificadas.
Duas empresas (Udio e Suno) que desenvolveram os algoritmos mais utilizados para gerar novas músicas foram, no ano passado, processadas pela associação de editoras discográficas americana (RIAA). Mais uma vez, está em causa o uso não autorizado, e não pago, do trabalho dos artistas para treinar o algoritmo. Terão chegado a acordo há poucas semanas.
Os algoritmos passarão a estar disponíveis num serviço de subscrição e usando o trabalho dos artistas que o autorizem (recebendo por isso uma compensação financeira).
Os detalhes não são claros. Os algoritmos já estão treinados. Como se vai compensar o trabalho de todos os artistas que foi utilizado? Não parece que o algoritmo vá ser eliminado e novamente treinado, apenas com o trabalho de quem autorize e seja por isso compensado. Que individualmente, atraídos pela familiaridade, sejamos impelidos a ouvir música artificial é uma coisa, mas como sociedade aceitar que meia dúzia de informáticos (e os seus investidores, que sabem financiar um empreendimento ilegal) se tornem multibilionários, parasitando o trabalho criativo é, no mínimo, condenável. É urgente regular a utilização do algoritmo ou corremos o risco de uma infestação por músicas parasitas, que asfixiam a criatividade humana.
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