A obra de Jorge Amado que mais me impressionou é também das menos conhecidas do autor e uma das primeiras da sua carreira.
Apresentada numa trilogia e intitulada Os Subterrâneos da Liberdade, refere uma realidade muito distante de Gabriela, Tieta ou mesmo D. Flor.
Num tempo de ditadura e de migrações internas forçadas pela avidez dos homens e a crueldade da natureza, Jorge Amado decide deixar de lado qualquer samba e pintar com a cruel luz da realidade os dramas humanos.
Li-a há muitos anos e a memória já não é o que era, mas duas cenas fixaram-se na minha mente.
A primeira é a da família, que, após semanas de viagem a alimentarem-se de ervas raquíticas, lutando com outros grupos por migalhas que lhes pudessem mitigar a fome, já sem esperança e depois de verem morrer os mais fracos por inanição, optam por atrair o animal de estimação da pequenita da família, um gato, e fazer dele a refeição que lhes concede mais uns dias de forças.
A outra cena passa-se num calabouço da ditadura, onde uma mulher que acaba de perder um recém-nascido, amamenta um moribundo atirado para as celas do esquecimento.
Durante cerca de um ano, convivi com sobreviventes da guerra dos Balcãs. Uma guerra fratricida, tão cruel e desumana que a comunidade internacional decidiu esquecer. Os relatos, quer de bósnios , quer de sérvios, kosovares… São terríficos e coincidem numa realidade: a fome fez desaparecer das cidades sitiadas os animais errantes que deambulavam pelas ruas.
Atos de canibalismo recente em locais onde a guerra e a fome grassam são relatados por quem assistiu, mas relegados para o esquecimento da ficção, pois só assim conseguimos viver sem uma mortal vergonha.
Outros há que fizeram filmes e são olhados como heróicos. O caso da equipa de rugby que caiu nos Andes nos anos 70 e cujos sobreviventes se viram obrigados a comer os seus companheiros mortos, a fim de poderem ter uma chance de serem recolhidos do local inóspito onde tinham caído.
O elemento comum de todas estas histórias extremas e arrepiantes é um só: a fome! A fome é o gatilho que faz de qualquer ser, humano ou animal, um predador
O que Trump deixa no ar é a existência duma espécie de cabala, da existência dum objetivo claro nestas pessoas que é… roubarem os animais de estimação para comerem
Pensava eu que já tinha ouvido todos os argumentos contra o fenómeno migratório, mas eis que o senhor Trump, que ainda não se apercebeu que se candidata à presidência dum país criado por imigrantes europeus, saca da cartola a história dos migrantes que vêm para comer os animais de estimação dos pacatos cidadãos de Springfield.
Seria hilariante se não fosse grotesco, perigoso, grave e… triste.
O que Trump deixa no ar é a existência duma espécie de cabala, da existência dum objetivo claro nestas pessoas que é… roubarem os animais de estimação para comerem.
Partindo do princípio que estes animais se encontram ao abrigo das casas dos seus donos, os “terríveis delinquentes” não entram para roubar o frango do frigorífico, o leite da prateleira ou a pie feita pela mãe de família. Tão pouco querem saber de levar o ouro ou o dinheiro. Não! O que querem mesmo é saborear o Tareco, o Bobby ou o canário.
Ou seja, segundo o senhor Trump, estaremos perante um outro objetivo migratório: a imigração gourmet! É no mínimo insólito.
Para além de ter sido desmentido pelas autoridades do Ohio e de Springfield, muito gostava de saber como é possível identificar quem possa praticar tais atos como sendo imigrantes!
É que cenas de pessoas vasculhando o lixo alheio à procura de algo que lhes permita sobreviver, são – infelizmente – o quotidiano das cidades de todos os países e sobretudo dos ditos civilizados.
As grandes cidades da América têm um submundo com milhares de sem abrigo, de pessoas fora de todos os radares estatísticos, a maioria nascida e criada em solo americano. Vemo-los à procura de comida nos caixotes do lixo e não me surpreende nada que se alimentem de ratazanas, gatos e cães errantes.
Um parêntesis neste raciocínio que serve para introduzir o exemplo português que se lhe seguiu.
Os animais podem ser classificados em selvagens, os que andam na selva e não podem ser domesticados, os silvestres, que embora possam e nalguns casos tenham sido domesticados, por abandono ou outra razão, deambulam pelas cidades sem dono e os domésticos nos quais se incluem os animais de companhia que convivem e vivem com os humanos.
Assim, surpreende ver um deputado do Chega que tem obrigação de saber tudo isto, vir a reboque do mentor norte-americano, dizer que por cá se passa o mesmo.
Para além de ter sido desmentido e de os seus vídeos serem bastante dúbios porquanto não se conhece o local onde são feitos nem data, como cidadã, choca-me muito mais o facto de alguém, um ser humano como eu, ter que recorrer a esse tipo de animal (e outros como as repugnantes ratazanas que em algumas famílias já são animais de estimação como o são alguns répteis) para matar a fome, do que o ato em si.
Que não haja dúvidas e que não se diga que defendo matar esses animais para comer. Logo eu que tenho três gatos e sofri horrores ainda há bem pouco tempo com a morte do meu cão!
Mas… qual de nós se se encontrasse numa situação extrema o não faria?
Bem, primeiro, roubaria certamente nos supermercados, entraria nas casas e assaltaria a despensa… Mas qual de nós para sobreviver não seria capaz de matar um gato ou um cão para se alimentar?
E não é por sermos ou deixarmos de ser imigrantes. É por FOME! Esse gatilho que despoleta o pior do ser humano.
A indignação de Trump e do senhor do Chega não deveria ser que supostos imigrantes (a cor não é documento, meus caros!) cometam tais atos.
O que é terrível é que haja pessoas, PESSOAS!, que tenham necessidade de recorrer a esse extremo para sobreviver.
E mais que apontar e fazer o diagnóstico da situação deveriam, porque esse é realmente o seu dever enquanto políticos (?!), apresentar soluções para que ninguém sofra a indignidade e o horror de morrer por não ter o que comer.
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