O nome dele é Aníbal, “como o presidente”, diz com um sorriso vazio de dentes.
Vive na rua há tanto tempo que perdeu a noção dos anos. Porquê? – pergunto-lhe e a resposta é um desconcertante “porque sim”.
Não procura nenhum albergue a não ser quando quer tomar um banho ou a fome tem já dias. Mas evita ao máximo sair daquele vão junto a um supermercado porque sabe que quando voltar já deixou de ser seu.
“Já tive que andar à porrada com um preto que queria o meu lugar. Todos querem ficar aqui: é abrigado e fica-se com as sobras.”
As sobras são o lixo dos produtos já deteriorados. Um luxo para quem nada tem.
A vida na rua é uma selva onde reina a lei do mais forte. O racismo impera apenas por uma questão de sobrevivência. Não é a cor da pele ou o género só por si, que desencadeiam as rixas silenciosas que ocorrem durante a noite, mas sim a defesa do território, um instinto quase animal que estabelece muitas vezes a diferença entre a vida e a morte.
Não é fácil falar-se com um sem abrigo. Falar mesmo, fazer com que se abra sem medo.
Ganhar-lhe a confiança é trabalho de muitas aproximações que podem levar meses, ou mesmo anos.
Nos últimos tempos, este número cresceu a um ritmo que não necessita de estatísticas para ser percetível. O Plano de Luta contra a Pobreza decididamente não teve os resultados esperados!
Aprende-se rápido a dizer o que se espera que seja o discurso adequado. Aprende-se muito na rua, diz-me.
Aníbal tem claramente e, como a grande maioria dos que vivem sem teto, um problema de alcoolismo. Presumo que seja preciso entorpecer muito os sentidos para conseguir viver dessa forma!
Não sei quanto da história de Aníbal é verdade ou é a versão que construiu. Conta-me que está na rua porque foi expulso de casa pelos filhos, cansados certamente de o ver sempre bêbado e violento. Diz-me quem tem três rapazes e uma rapariga. A filha frequenta o supermercado onde ele “mora”, mas esconde-se para que não o veja. “Porquê?” pergunto-lhe à espera que me diga que por vergonha. Mas não. O medo dele é que o denuncie ao “Chefe do supermercado” e que aquele o expulse dali. Sempre, sempre a sobrevivência.
Aníbal é apenas um das centenas de sem abrigo que se aglomeram nas nossas ruas.
Nos últimos tempos, este número cresceu a um ritmo que não necessita de estatísticas para ser percetível. O Plano de Luta contra a Pobreza decididamente não teve os resultados esperados! Não por falta de vontade política e cívica, estou certa, mas porque se deve ter visto a braços com uma vaga imensa e crescente de gente sem teto e, sobretudo, com uma burocracia galopante.
Basta sairmos na Estação do Oriente ou passarmos pelas arcadas do Terreiro do Paço para vermos, a cada noite que passa, aparecer mais uma trouxinha que é o casulo ténue dum ser humano.
Como cidadã sem peias de cargos políticos, parece-me ser um contrassenso existirem tantos, mas tantos, edifícios públicos devolutos, com capacidade de albergar estas pessoas e continuarmos a conviver com estas chagas abertas na nossa sociedade.
Sim, é verdade que alguns resistirão a seguir regras e que preferem a vida sem normas e livre das ruas. Mas será sempre um número residual, estou certa.
Como se não bastasse a famigerada crise, a pressão migratória nas grandes cidades, Porto e Lisboa, fez crescer ainda mais o número de pessoas a viverem nas ruas. Algumas têm trabalho e… pagam impostos. Mas não têm casa!
A situação de sem abrigo é ainda mais precária, degradante e insegura, quando se trata de mulheres.
Há um silêncio pesado no que respeita à violência sofrida por estas, que, não raras vezes, optam por
tomar como companheiro alguém que as proteja da dura lei das ruas.
Não existem relatos de denúncias de maus tratos, humilhações ou violações de mulheres a viver debaixo da noite. E, caso houvesse, seriam levadas em conta?
Esta população que cresce a olhos vistos não vota, não protesta. A maioria não tem documentos. Outros nem sequer relembram o nome que lhes foi dado e respondem a alcunhas forjadas nas ruelas.
Numa altura em que parece ser moda falar-se de “doenças mentais” como se apenas tivessem aparecido agora, era tempo de olhar para estas pessoas que padecem todas elas de alguma patologia ligada à mente. Se não à mente, às emoções. Pois que é a tristeza, o desânimo, a solidão, o medo a revolta calada, o desprezo por si mesmo, senão estados de dor na alma?
Sem falarmos das mais comuns, de adições às drogas ou ao alcoolismo.
Quando pensamos em doenças mentais, este é o lugar certo para começar a trabalhar: na rua com os que nada têm.
Os sem abrigo não existem. São como fantasmas que evitamos ver. Não por medo mas por vergonha. Uma vergonha profunda da qual só nos damos conta em datas de Paz e Boa Vontade.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.