A hipocrisia das políticas externas jamais cessará de me surpreender e indignar. A maior parte das narrativas que construímos em torno das grandes catástrofes que têm como origem a intervenção humana servem para embotar a opinião pública, descansar a consciência duns poucos e desculpabilizar a maior parte.
Perante a grande mobilidade humana a que vimos a assistir na última década, ainda não fomos capazes de fazer ato de contrição e assumir a parte de responsabilidade que nos cabe e agir em conformidade.
Apoiámos governos déspotas e substituímo-los quando nos pareceu ser mais conveniente para os nossos interesses. Fomentámos uma Primavera Árabe, mas não a apoiámos nem a fizemos florir. Com o argumento de levarmos a democracia e a liberdade a outras latitudes, instigámos guerras, armámos fações, destruímos infraestruturas.
Levámos o nosso etnocentrismo a um patamar nunca antes visto e o resultado está à vista: milhões de deslocados à procura da sobrevivência.
O argumento de Pilatos já não colhe nem iliba da quota de culpa que a Europa e os Estados Unidos da América têm neste estado de coisas. Não são, de todo, os únicos culpados. Mas a sua política externa não está inocente no desespero destes milhões de pessoas.
Tão pouco é argumento suficiente ou pertinente dizer-se, de forma populista mais ou menos assumida, que o acolhimento desta população em movimento representa um perigo em si. Naturalmente que haverá elementos indesejáveis, gente sem escrúpulos, máfias organizadas a alargar a sua área de influência. Mas nenhuma destas situações marginais tem como base a religião, a cor da pele, a cultura ou outra qualquer razão que não seja a má formação individual e essa existe entre nós também e abundantemente.
A população síria, que nos fez chorar em 2015 defronte da televisão, caiu no esquecimento. Tal como a população iraquiana e tantas outras. E, no entanto, o seu sofrimento continua a crescer, a ser moeda de troca para geoestratégias em que as pessoas não são mais que estatísticas sem rosto.
E como ficar indiferente perante as centenas de pessoas, famílias com crianças de colo, velhos, mulheres, que se agarram às barras de verdadeira prisão que formam o enorme muro que construímos no limite entre a Polónia e a floresta bielorrussa?
Já aqui tinha falado do drama libanês que empurrará um milhão e meio de sírios de volta ao que resta daquele país. A Turquia, que foi a votos ainda não há uma semana, voltou a falar da extradição dos quase três milhões que permanecem nos campos de refugiados. O argumento continua a ser o fim da guerra aberta dentro da Síria. Com efeito, as tropas do Daesh já não representam perigo e o regime de Bashar al Assad conseguiu, contra tudo e contra todos, inclusive a comunidade internacional, manter-se no poder. No entanto, para além dum território em escombros, a Síria tem numerosos focos de conflito interno que põem em perigo as vidas dos cidadãos.
A Turquia, que assumiu o papel de “Estado tampão” neste êxodo em regime de outsourcing europeu, não tardará a voltar a ameaçar a União Europeia (UE) de que abrirá as portas ao movimento em direção aos países do centro europeu, caso as suas reivindicações não sejam satisfeitas.
Porém, mais chocante que estas situações latentes é a que está a acontecer agora, neste preciso instante, na fronteira entre a Bielorrússia e a Polónia.
Conheci, em segunda mão, uma vez que ali não estive, este drama aquando do resgate da família iraniana com quatro filhos que encontrou santuário em Portugal. Foi uma história que acabou bem, pelo menos para eles. Já o mesmo não se pode dizer do grupo que tudo fez para que tal acontecesse. Mas, enfim, são os escolhos de quem teima em não ficar indiferente.
E como ficar indiferente perante as centenas de pessoas, famílias com crianças de colo, velhos, mulheres, que se agarram às barras de verdadeira prisão que formam o enorme muro que construímos no limite entre a Polónia e a floresta bielorrussa?
Encurralados entre as ameaças de Lukashenko e a fortaleza em que a Europa se transformou, vão ficando por ali, sem água, sem víveres, sem esperança, sob o olhar dos guardas polacos, alguns certamente com o coração apertado pelo dever outros com a indiferença e frieza de quem nada tem a ver com a situação.
As ONGs fazem chegar, através das redes sociais, vídeos pungentes aos quais, quero crer, que nem os mais coriáceos podem ficar indiferentes, mas que os media não divulgam porque a sua agenda é marcada por outros acontecimentos. Uma mulher que morreu ao dar à luz sem qualquer ajuda; uma criança que chora com sede e pede água à mãe que a embala impotente, jovens de mãos em carne viva do arame farpado que tentaram galgar durante a noite…
Estas pessoas tiveram um dia casa, sonhos, vida. Criaram espectativas, lutaram por um futuro melhor, fugiram à miséria, à fome, à guerra, à perseguição, para acabarem assim, numa terra de ninguém.
Gente de olhos sem esperança, sem futuro, apenas, ali, à espera de nada.
Gente que nos deveria envergonhar como europeus, como democratas ocidentais, como seres humanos. Gente igual a nós e que teimamos em não ver.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.