No passeio do Boulevard, um homem dança. Está cansado, dança como se não houvesse amanhã. Sozinho. Ou não, ocasionalmente acompanhado por quem passa. E quem passa, no Boulevard Voltaire, já o dia 11 de janeiro de 2015 se fez noite, é um mar de gente. O homem sorri, tem um ar distinto, o cabelo todo branco, faz umas pausas de breves segundos, ofegante, para recuperar forças e continua a dançar, enérgico, ao som de música dos anos 70 que sai da janela de um apartamento no segundo andar, com jovens à janela. Ritmos disco, clássicos do funk. Observo-o, de perto, durante alguns minutos. Dança contra o terror, contra o medo, pela alegria de estar vivo, e dança como se ninguém estivesse a olhar para ele.
Vozes soam alto, já passa da meia noite. Uma placa informa que ali, logo a seguir à grande rotunda da Porte de Vincennes, acaba Paris e começa Saint Mandé. Mas é tudo Paris. Na véspera, aqui mesmo ao lado, Amedy Coulibali assassinou quatro pessoas e manteve outras 15 reféns num Hypercacher, pequeno supermercado especializado em produtos kosher, frequentado pela numerosa comunidade judaica. As vozes sobem de tom, parece uma discussão, sinto a obrigação profissional de me aproximar, perceber o que se passa. Não é uma discussão, mas uma conversa pública. Cada pessoa fala alto para que todos os outros a ouçam. Parece haver uma velha ordem, com uma aprendizagem de séculos, a funcionar ali; as pessoas agrupadas em círculos concêntricos em plena rua; algumas que se aproximam, outra que se afastam. Falam à vez, sem interrupções, mesmo que a seu lado alguém diga, mais baixo, frases de apoio ou discordância. Misturo-me. Muitos deles têm um kipah na cabeça, alguns dos mais velhos têm chapéu negro e longas barbas. A comunidade judaica, traumatizada e assustada, fala dos seus assuntos. Muitos dizem que chegou a hora de irem para Israel, não sentem que a sua segurança seja garantida pelo Estado francês. Um dos mais velhos (um líder religioso? Não estou certo) tira um iPhone do bolso, procura a página certa e lê uma longa oração em hebraico; algumas partes são acompanhadas por todos. Talvez o único incapaz de os acompanhar, sinto que é a altura de me afastar do grupo. No ar, o cheiro a cera queimada das muitas velas que, no chão, homenageiam os mortos da véspera.
Estas memórias, um ano depois de ter estado em Paris a cobrir, para a VISÃO, os dias que se seguiram ao atentado do Charlie Hebdo, também me puseram a pensar no jornalismo que se faz. A simples possibilidade técnica de imediatamente contar tudo o que vemos e ouvimos pode mudar o próprio momento que vivemos. A sombra que esses momentos deixam na nossa memória faz, ainda, parte do ofício do jornalista? Diria que sim. O tempo pode puxar para primeiro plano personagens, pormenores, situações, cheiros… Tenho-me lembrado – sobretudo depois dos outros dias trágicos de Paris, em novembro – desse tal forte cheiro a cera queimada, a velas, em plena rua. Não lhe dei grande importância há um ano, hoje parece-me um símbolo poderoso para carregar todo o ambiente de comoção, tragédia e desespero, a disrupção violenta no quotidiano de uma grande e bela cidade.
A cacofonia da informação em directo, do imparável fluxo de notícias nos mais variados suportes, não pode confundir-se com a ideia de jornalismo e informação. O jornalismo é o tempo que passa. E é também o tempo que se exige – muito para lá daquele que é preciso para a leitura de títulos online e rodapés de canais de notícias. Jornalismo é lembrar-me, agora, da cor da camisa do homem que dança no passeio do Boulevard Voltaire enquanto milhares e milhares de pessoas o atravessam manifestando-se pela liberdade, contra o terrorismo e os fundamentalismos.
As nossas vidas são sempre em directo. O jornalismo não. Ou deixa de o ser.