Estamos habituados a ver as notícias distorcidas, processo desencadeado até à insanidade nas redes sociais, para fornecer veneno e estupidez a todas as discussões sobre racismo e discriminação. E a quem incomoda esta distorção mental, esta discrepância entre aparência e realidade? Tem alguma importância que os outros (sempre os outros) sejam discriminados? A quem é que isso importa? E aqueles a quem isso importa, importam?
Isto é apenas o preâmbulo da história que quero contar. Uma história que coloca um foco luminoso por cima da comunidade cigana, geralmente ostracizada. Há anos que o município de Pombal, em parceria com outras entidades do concelho, anda a pôr os pontos nos ii’s. Mais precisamente em três palavras que começam por i: intervir, integrar, incluir.
Esta cadeia virtuosa tem sido o ponto de partida para inúmeras iniciativas em Pombal, financiadas pelo Alto Comissariado para as Migrações, todas com um objectivo comum: o de mitigar os problemas sócio-económicos de uma região onde vivem muitas famílias carenciadas e, de entre estas, uma importante comunidade cigana.
Em parceria com a Associação de Desenvolvimento e Iniciativas Locais de Pombal, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, o Agrupamento de Escolas de Pombal e o Agrupamento de Escolas Gualdim Pais, o programa “Intervir, Integrar, Incluir” tem organizado acções de combate ao absentismo e abandono escolar, a comportamentos desviantes e à discriminação e exclusão social da comunidade cigana. Tudo problemas que ajudam a perpetuar os ciclos de pobreza, de geração em geração. E também muitos preconceitos numa sociedade onde a intolerância encontra facilmente caminhos por onde crescer.
De entre os projectos desenvolvidos em tempos de Covid-19 destaca-se a iniciativa “Cabazes Aceita, Inclui”, uma recolha de alimentos, feita em parceria com uma igreja evangélica local, pela comunidade cigana. Destinada a apoiar as famílias que ficaram no desemprego em consequência da crise económica que chegou com a pandemia, esta angariação de alimentos contemplou 20 famílias carenciadas. Notem: nenhuma de etnia cigana.
O primeiro cabaz foi entregue por um grupo de mediadores em representação das crianças e jovens ciganos que participaram nesta recolha. Ter colocado estes jovens na linha da frente do auxílio aos munícipes de Pombal foi um gesto que os ajudou à consciencialização da importância da participação cívica. Por outro lado, constituiu um sinal para toda a comunidade: o de que estamos todos juntos, que todos contam, agora mais do que nunca. E isso só pode ser bom.
Quando inúmeros relatórios indicam que os ciganos são realmente discriminados, há esperança colocada nesta história. Segundo o relatório da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), de 2018, Portugal é o país onde os ciganos mais se queixam de discriminação, entre nove países europeus analisados. O relatório “Uma preocupação persistente: a romafobia é um obstáculo à integração de ciganos” evidencia as desigualdades que eles enfrentam no arrendamento de casa, na procura de emprego, na segregação na escola. Um em cada três ciganos é vítima de assédio e as suas condições de vida na União Europeia é reveladora: 80% dos ciganos estão em risco de pobreza, face à média comunitária de 17%, e 30% vivem em casas sem água canalizada. O acesso a água potável está muitas vezes ao nível das populações do Gana ou do Nepal, adianta ainda o documento.
Vejo estes dados e não sou capaz de ficar indiferente. Perante actos de discriminação, parece que o meu sangue sai da auto-estrada e acelera, descontrolado, por caminhos loucos de terra batida. O tráfego dentro da minha cabeça deixa de acreditar em semáforos. O resultado é uma confusão incessante, barulho, trepidação e alguma tristeza pelo caminho.
As iniciativas da Câmara Municipal de Pombal mostram um outro lado da comunidade cigana local, sublinham a forma como pertencem tão completamente a um povo que amam, de quem se riem, de quem se queixam e contra quem praguejam, mas do qual nunca se separam. Os ciganos são um povo que sobreviveu sem nunca ser salvo. Muitos deles, todos sabemos, usam a angústia como uma armadura, a raiva a tiracolo como cintos de munições. Muitos vivem à margem, e de lá não querem sair. Mas é preciso não tomar a parte pelo todo. E estar aberto a aplaudir quando isso é o mínimo que podemos fazer.
Há gestos dignos de serem elogiados e partilhados. Porque há uma implacável discrepância entre aparência e realidade. E porque, afinal, todos podem remendar a vida dos outros, para lá de rótulos, para lá de ideias feitas.