Acredito que muitos dos que começam as suas aventuras solidárias em tempos de pandemia sentirão que há viagens sem regresso. E que nunca mais quererão voltar dessas viagens. Como se tivessem descoberto uma chama libertadora, uma esperança, deixando pedaços de si pelo caminho.
Em vez de ficar aprisionada no tempo, suspensa na ansiedade do confinamento (como se a ansiedade se pudesse descontinuar carregando no botão “pausa” no filme da vida), Ashley Lawrence pôs-se em campo. Fez da sua casa o umbigo do mundo, do seu mundo, e começou a costurar. Mas já lá vamos.
Imagine como será gerir estes dias estranhos e conturbados acrescentando a todas as dificuldades inerentes ao estado de confinamento um problema auditivo grave. Trocar rotinas, abdicar de hábitos enraizados e estar longe das pessoas que amamos gera ansiedade – ampliada, seguramente, com um problema de surdez.
Quando a pandemia chegou aos Estados Unidos – por uma daquelas admiráveis conjugações que tece o destino – Ashley Lawrence, estudante na universidade de Eastern Kentucky, estava a frequentar o último ano de um curso especializado no acompanhamento de pessoas com deficiências auditivas. Portanto, não foi por acaso que se lembrou da comunidade surda. Quando o uso de máscaras começou a ser aconselhado pelas autoridades, apercebeu-se da dificuldade que isso representaria para quem precisa de acrescentar à língua gestual as expressões faciais e a leitura de lábios.
O amor, já se sabe, gera uma inquietação criadora. E, curiosamente, quanto mais profundo é o amor, menos precisa de palavras. Ashley ficou confinada ao perímetro da sua casa e com tempo de sobra para se ocupar nos intervalos das aulas que passaram a ser à distância. Então, lembrou-se de confecionar um modelo de máscaras adaptado. Algo que protegesse as vias respiratórias, mas ao mesmo tempo deixasse os lábios à vista.
Foram dias de descoberta, de iniciação, de motivação, pela quarentena adentro, pela sua alma adentro. Como se ela fosse dona do mundo: até onde as suas acções conseguissem ter inpacto, seria tudo dela. Tinha a comunidade inteira de surdos para socorrer. Falou com a mãe, mais experiente em questões relacionadas com a costura, e ambas desenharam um modelo prático e seguro. Com uma “abertura” na zona da boca forrada com material transparente. Uma máscara que permitisse ver os lábios e, claro, os sorrisos de lua cheia das pessoas que se cruzam na nossa vida.
Não era preciso ser poeta ou sábio para antecipar o alcance e a beleza desta ideia. A novidade espalhou-se como fogo num palheiro. Em dois dias, mãe e filha receberam dezenas de encomendas de seis Estados diferentes – e era só o começo.
Encantadas, depressa se preocuparam também em conceber modelos mais aperfeiçoados, que não interferissem, na zona posterior das orelhas, com os aparelhos auditivos. Acautelaram todos esses problemas com uma dedicação admirável, sem esperar outro retorno que não fosse o reconhecimento pelo seu trabalho. Há pessoas que nascem incapazes de se enredarem em emoções sombrias. A verdade é que isto fê-las sentir inteiras de novo, lembrando como estavam esfomeadas por alguma coisa simples e pura. Sem terem de encher os dias, de enganar o vazio que se instalou na vida à sua volta, Ashley e a mãe perceberam, afinal, que a vida não é uma selva onde só os piores triunfam.
Sócias em tempos de coronavírus, esta dupla mãe e filha não cobra o tempo e o material despendido nesta empreitada a que agora se dedicam com todo o empenho. Muito menos os direitos de autor. Os gestos de amor são mesmo assim: pró-bono.