Paraisópolis soa a nome de local de sonho, mas quem conhece sabe que é uma das maiores favelas de São Paulo, no Brasil. Bem longe do paraíso que sugere o seu irónico nome de baptismo, em Paraisópolis moram cerca de 100 mil pessoas, famílias inteiras concentradas em barracas, vivendo nas piores condições – pobreza e violência atropelando-se em desordem. Um local aparentemente turvo e venenoso.
Se a vida já era difícil antes de o novo coronavírus desembarcar em terras brasileiras, agora com a pandemia e sem uma política governamental organizada para combater o vírus, a comunidade de Paraisópolis sentiu-se ameaçada. Mais uma sombra entre as muitas que pairam por ali.
No início, as notícias referentes ao vírus pareciam tiradas de uma cena em câmara lenta, como se se verificassem noutra dimensão, como parte de um pesadelo. Começava então a época do desabrido medo. Não é difícil imaginar os habitantes de Paraisópolis a mergulharem num rancor alimentado da miséria de uns e da prepotência de outros. Afinal, tantas incertezas, tantas dúvidas a rondar, a corroer. No meio daqueles casebres separados por vielas estreitas, como seria possível manter a distância social? Em barracas sobrelotadas, onde por vezes moram juntos pais, filhos e avós, como defender os mais vulneráveis da Covid 19?
A falta de resposta das autoridades e a iminência de uma catástrofe capaz de dizimar grande parte daquela população desencadeou um movimento que pasmou o Brasil inteiro. Os habitantes da favela, que ali não passavam de meros prisioneiros, abandonados à sua sorte, disseram para si mesmos que iriam sobreviver, fosse como fosse. Em pouco tempo os líderes da comunidade elegeram, entre os moradores, 420 presidentes de rua. A estes autênticos soldados da paz foi atribuída a missão de vigiar, cada um, 50 casas com o objectivo de identificar situações suspeitas de contágio. Quando necessário, chamam uma das três ambulâncias que mantêm de prevenção.
Em Paraisópolis já se registaram mais de 15 casos de contaminação e oito mortes suspeitas, mas o sentimento é de que seria muito pior se a comunidade não se tivesse unido. Intactos na sua dignidade de sempre, quando ouvimos falar os líderes comunitários percebemos que nada nas suas palavras revela angústia, como se estivessem em pleno domínio das circunstâncias adversas que os rodeiam. E em vez de se manterem prisioneiros, suspensos numa espécie de limbo, sem controlo algum sobre o próprio destino, fizeram o que tinha de ser feito.
Não valia a pena perderem-se em pensamentos vãos, recordando as múltiplas razões para se sentirem infelizes e desprotegidos. O seu apurado e implacável senso de realidade salvou-os das frustrações, das mágoas, do peso da vitimização e da tentação de se lamentarem. Mostraram-se indiferentes ao cansaço ou ao desespero, como se nenhum esforço fosse demasiado. Provaram ter uma determinação de tanque de guerra para arrasar os obstáculos que aparecem pela frente.
Na favela, também os que já perderam o emprego devido à pandemia estão a ser apoiados. No último sábado foram entregues mais de 2.000 refeições ao domicílio, uma demonstração de solidariedade pura – aquele sentimento que interrompe a pobreza extrema, capaz de espantar o mundo.
Mas há mais. Ainda há quem produza máscaras para as pessoas se protegerem. O projecto de capacitação de mulheres para se especializarem como costureiras – “Costurando sonhos” –, que já existia na favela, redireccionou-se para a produção das máscaras tão importantes para a proteção de todos.
Foi assim que, sozinhos, os moradores de uma das maiores favelas de São Paulo deixaram o mundo, que tantas vezes os despreza, de queixo no chão. No inferno que tem nome de paraíso, contra todas as probabilidades, criaram um oásis de solidariedade, carinho e amor pelo próximo, onde todos os dias se luta pelo bem comum.
E, pelo caminho, parece que recuperaram a chama de entusiasmo inconformista que anima quem está a fazer algo em prol dos outros. Há, claro, um fardo de histórias e de casos trágicos para contar (afinal, aquilo é uma favela!), mas a vida ganhou outro propósito e um ideal claro que a todos preside, onde a missão de cada um deles no mundo se tornou fundamental.
Termino com uma certeza que me acompanha desde há muito: quando se examina a geografia da generosidade, a vida brinda-nos com surpresas comoventes.