Quando foi o debate de política geral, no dia 30 de junho no Parlamento, registei o tom de António Costa no esclarecimentos que prestou à nação sobre a situação no Serviço Nacional de Saúde. E registei que a forma como o Primeiro-Ministro entendeu justificar as falhas no SNS era importante não tanto pelo que então disse, mas sobretudo pelo que não disse. Não disse que tinha confiança absoluta na Ministra, não disse que a protegia contra os ataques que chegavam de todos os lados, em suma, não disse que o lugar de Marta Temido estava seguro.
Não podia estar. A tragédia estava anunciada. Era certo e sabido que o verão seria a prova de fogo num sistema preso por arames, que já vinha mal de trás antes da Covid-19, que ultrapassou todos os limites da sua capacidade durante uma situação excecional de uma pandemia graças ao esforço hercúleo de todas as equipas, e que estava a tentar sair da excecionalidade e voltar ao “velho normal” em modo enfraquecido, cansado e desgastado. Um passo em falso, que na Saúde se mede por mortes, seria a gota de água. A sua continuidade à frente da pasta dependeria do teste do verão e de como conseguisse reorganizar as tropas pós combate decisivo.
A morte de uma grávida com pré-eclampsia grave por uma paragem cardiorrespiratória durante o transporte por falta de vaga na neonatologia no maior hospital do País (Santa Maria) foi a gota que fez um copo cheio transbordar. Ontem, ao ler a notícia e os seus contornos, percebi isso. É preciso recordar que, no início de Agosto, os enfermeiros de neonatologia de Santa Maria pediram escusa de responsabilidade, alegaram falta de condições e disseram “que em 60% das equipas há um enfermeiro em falta”. Vagas na neonatologia não se aferem apenas por incubadoras. Ainda será avaliado, em mais um inquérito, exatamente o que se passou, se houve realmente falha e onde. Mas o caso, tal como aconteceu, era demasiado sério e demasiado sintomático da situação insuportável a que chegou o SNS para a Ministra passar incólume. A pressão das ordens e sindicatos, como sempre, ajudou.
Temido passou pelo caos absoluto de uma pandemia, conseguiu aguentar as pontas e sobreviveu, mas não conseguiu sobreviver ao regresso ao “velho normal”. Aguentou-se a gerir os imprevistos da Covid 19, contando com a compreensão e tolerância de todos perante uma situação desestruturante, mas não foi capaz de voltar a estruturar o sistema. Provou na gestão de crise, falhou no que os portugueses já viam como dia-a-dia.
Há várias lições a retirar desta saída.
Marta Temido sai pela porta pequena quando podia ter saído pela porta grande, com uma popularidade em alta e uma simpatia generalizada no fim do primeiro mandato. Fez um erro de auto-avaliação e foi mal- avaliada. Não devia ter aceitado fazer novo mandato depois de gerir uma esgotante situação de pandemia. Como cometeu um erro ao esticar a corda da paciência e da tolerância dos portugueses perante a ineficiência dos serviços.
Temido cometeu outra falha grave: acreditar que era possível pedir mais um bocadinho de esforço ao pessoal médico depois de todos estarem esgotados. E acreditar piamente num ideal de SNS que depende desse esforço intolerável e que está longe de ser conseguido.
Uma maioria absoluta não confere uma carapaça inquebrável nem um governo de maioria absoluta é garantia de inamovibilidade ministerial. Temido estava tremida e tremeu tanto que caiu. E já estava à vista de todos que isso, mais dia, menos dia, iria acontecer.