“Teremos de subir a escadaria [da Assembleia da República] e eu serei o primeiro. Temos de pensar em desobedecer.” A ideia de um dos oradores da manifestação do Movimento Zero, que reuniu esta semana centenas de apoiantes à porta do Parlamento, ficou para já posta de lado com um “mas não hoje, da próxima vez”, porém a ameaça ficou no ar. Polícias a invadirem a Assembleia, que tal como proposta? Resta saber para que era suposto servirem as algemas que a organização, anónima, pediu nas redes e no Telegram para os manifestantes aderentes trazerem no seu kit (além dos polos azuis da PSP e da GNR): seria para algemar deputados?
A manifestação foi pífia perante os objetivos da convocatória “Hora de Agir – Unidos Somos a Tempestade que vos Atormenta”, mas os indícios que nos devem preocupar estavam, mais uma vez, lá todos: a ilegalidade da conduta, com manifestantes fardados e percursos não comunicados às autoridades, a radicalização, o intuito de abalar a ordem e afrontar os poderes, a ideia de que vão “lutar com tudo”, estando claro na convocatória que esta “luta em nada se assemelhará aos moderados protestos realizados nas últimas décadas”.
O que falta para começarem a soar finalmente as campainhas de alarme? Este movimento social inorgânico, sem rostos, responsáveis nem porta-vozes, que surgiu em maio de 2019 e que está a minar por dentro as polícias com a sua retórica populista, agressiva e extremista fala da democracia como “o regime”, que classifica com acusações de “nojento”, “vergonhoso” e “intolerável”. As semelhanças com a extrema-direita – a retórica, os gestos (como o distintivo OK usado pelos apoiantes da supremacia branca) e o uso de desinformação – não são uma coincidência. Os ataques ad hominem a pessoas concretas, sejam políticos, ativistas ou colunistas de opinião, também não.
É um facto que os polícias ganham mal e têm de ser valorizados. A luta pela dignidade das classes profissionais e pelas condições de trabalho é legítima, mas tem uma forma de ser expressa através dos sindicatos, permitidos em Portugal há duas décadas para as polícias. Ainda assim, nem mesmo a atuação dos sindicatos é consensual internacionalmente, porque as forças policiais, pela sua natureza, têm características que podem fazer da luta pelos seus direitos, se mal conduzida, uma afronta aos valores que devem proteger. Aliás, no mesmo dia em que o Movimento Zero se manifestou, saía na americana Atlantic um grande artigo a questionar a própria existência de sindicatos policiais nos Estados Unidos da América, minados pela retórica trumpista. “Isto não é um sistema estragado por algumas maçãs podres. Isto é um sistema desenhado para criar maçãs podres”, escreveu Adam Serwer em Os Instintos Autoritários dos Sindicatos das Polícias.
Nunca foi tão legítima a pergunta “Quem guarda o guarda?”, perante a ameaça que fenómenos como o Movimento Zero colocam ao sistema que é suposto protegerem. Ao violarem a lei e colocarem em causa a ordem pública e os valores democráticos, estes grupos estão a destruir os fundamentos da democracia. Perante a passividade e conivência de todos os colegas das forças de segurança.
Não há soluções fáceis, mas é preciso investigação e responsabilização. Podem continuar a assobiar para o lado, mas as consequências disso pagam-se caro.