Joe Biden acaba de ser eleito 46º Presidente dos Estados Unidos da América, com o maior voto popular de sempre. Kamala Harris será a primeira mulher vice-presidente. Hoje é um dia bom: é o dia que vimos a democracia a funcionar. E o dia em Donald Trump sair, esperemos que pelo seu pé, da Casa Branca, será um dia feliz para a democracia e para a ordem mundial. Para mim será, sem qualquer sombra de dúvida, a melhor notícia deste fatídico ano de 2020.
Não é só por Donald Trump não deixar que quaisquer escrúpulos, educação ou decência se interponham entre ele e os seus objetivos pessoais. Não é só por não ser detentor de qualquer sentido de estado e ofender os mais básicos valores e princípios de salutar convivência em sociedade. Não é só pelo facto de Trump ser um espécimen sem qualquerstamina para ser chefe de estado da América. Não é só por Trump padecer de um transtorno de personalidade narcísica evidente, além de ser incendiário, divisionista, mentiroso, irresponsável, populista, racista e machista. Não é só por tudo isto, que já seria muito.
É, sobretudo, pelo que Donald Trump simboliza. O que um homem destes, a entrar pela porta grande da Casa Branca e a sentar-se na sala oval, representa para o mundo. É por se empenhar em ser o líder do pior que há no nacionalismo, em vez de líder do mundo livre. É pela vitória da mentira sobre a verdade, da indecência sobre a civilidade, do egoísmo sobre o coletivo, do ódio sobre a tolerância, da agressão sobre a empatia. É, numa palavra, pelo seu exemplo.
É o exemplo que dota as espécies animais racionais de ferramentas essenciais à sua sobrevivência e organização social. É sobre o exemplo que assenta grande parte da organização coletiva desde que o Homem assentou arraiais em sociedades há mais de 10 mil anos. E é o exemplo que forma seres humanos melhores, mais completos, mais capazes.
Todo e qualquer o líder que não percebe o valor do exemplo não tem a mais pequena vocação para a função. O exemplo é o mais poderoso instrumento de motivação: capaz de ajudar a elevar homens a heróis ou descer a vilões.
Trump não é uma questão de esquerda e de direita. O problema de Trump não é a política, não são as reformas, não são as leis e a desregulação. Não é só a má gestão da pandemia. O problema de Trump é o caráter. O problema de Trump é tudo o que, de pior, ele inspira, autoriza e legitima.
Primo Levi, um judeu que esteve preso num campo de concentração, escreveu um dos livros da minha vida, brilhante na contenção, sem sombra da mais do que compreensível autocomiseração, perdoará o abuso do empréstimo do seu título . “Se Isto É Um Homem”, perguntava Levi na capa das páginas em que descreve as mais inimagináveis atrocidades cometidas na Alemanha nazi durante a segunda Guerra Mundial.
Se isto é um Presidente, questiono-me eu todos os dias desde a fatídica noite, há quatro anos, em que assisti, assombrada, à sua eleição pelos americanos em 2016. Isto não é um Presidente. Isto não é tão pouco um homem. Isto é um erro, uma aberração histórica. Isto é um sinal dos tempos, dos muros que se reerguem, das sociedades que se polarizam, mas massas que se desesperam. As razões são profundas, e foram alimentadas pelas redes sociais: é a política do ressentimento.
Se a sanidade imperar, antes de 20 de Janeiro Trump está de saída da Casa Branca. E Joe Biden “entrará como democrata e governará como Presidente dos Estados Unidos”, de todos os americanos.
Mais velho e pouco carismático, a vitória de Biden foi pífia – não há a ansiada vaga azul. Mas Biden, um homem decente, tem agora a difícil tarefa de tapar o fosso e chegar ao outro lado da barricada no campo de batalha em que Trump transformou a América. Tem de conseguir dar a mão ao eleitorado que está desorientado, desiludido, desesperançado – e que tem de ser respeitado, ouvido e atendido. Trump recolheu votos de cerca de 70 milhões de eleitores. E isto, que é também a democracia a funcionar, não pode ser ignorado.
Mas atrevo-me a dizer que qualquer pessoa, escolhida ao calhas entre a equipa de funcionários residentes da Casa Branca, cumpriria os mínimos exigíveis para suceder a Trump e ser melhor do que ele. Bastaria ser alguém com as mais básicas qualidades humanas, que Trump manifestamente não tem.
Recomeçar vai ser difícil. É como acordar de um sonho mau. Há feridas abertas e muitos traumas. Há uma América dividida, com medo, doente. Mas, finalmente, está prestes a acabar o pesadelo americano.