Entender o que se passa na cabeça de um jovem ocidental que se entrega ao Daesh e se dispõe a matar e a morrer por Alá é, para a maioria de nós, independentemente do credo, uma tarefa impossível. Por que caminhos sinuosos vão os pensamentos de alguém que se dispõe a matar e a morrer por um deus, em pleno século XXI? É inexplicável, indizível. Mas, para mim, o mistério maior reside nas mulheres da Jihad. Elas que largam tudo, se isolam do mundo que sempre conheceram e se entregam a uma organização que as subjuga e violenta física e sexualmente.
Quem seria Hasna Ait Boulahcen, a jovem que morreu em Saint-Denis, entrando para a história como a primeira mulher kamikaze em França? Que sonhos tinha? Queria ter filhos? Gostava de moda? E de pizza? Pouco se sabe sobre ela, e o que se lê são fragmentos aqui e ali, peças de um puzzle de uma história de vida difícil de montar. Boulahcen, filha de um muçulmano, tinha 26 anos e era familiar de Abaaoud, um dos operacionais do atentado. Vivia até há pouco tempo em Aulnay-sous-Bois, nos subúrbios a norte de Paris. Teve uma infância de maus tratos, foi acolhida numa família adotiva aos 8 anos, que abandonou aos 15. Fez uma juventude rebelde com muitas festas, álcool e sexo. Excêntrica, tinha como imagem de marca os chapéus de cowboy. Gostava de fazer raps de improviso, dizem que era a miúda da piada fácil. Há seis meses, fez uma súbita transformação que deixou a família adotiva (com a qual cortara relações), amigos e vizinhos assombrados. Passou a andar de hijab (a túnica que cobre o corpo menos o rosto), um mês de pois passou para o niqab (que cobre a face). Radicalizou-se e arranjou amigos do Daesh. Pensa-se que nunca esteve na Síria, mas aderiu com unhas e dentes ao terrorismo islâmico. O desfecho foi o que se sabe: morreu durante a explosão de um colete-bomba, que inicialmente se pensou que tinha sido acionado por si, mas que os investigadores franceses vieram mais tarde a concluir que seria vestido e rebentado por um outro homem também presente no apartamento.
Há cada vez mais mulheres muçulmanas, nascidas ou convertidas mais tarde ao Islão, a juntarem-se à causa do autodenominado Estado Islâmico, e muitas delas foram mesmo viver para a Síria. Entre os 20 a 30 mil soldados do Daesh no Iraque e na Síria (os números são estimados e variam), cerca de 10 por cento dos recrutamentos que vêm da Europa, América do Norte e Austrália são jovens mulheres. Destas cerca de 200, a maioria são jovens entre os 18 e os 25. Estima-se que a maior parte tenham vindo de França (70) e do Reino Unido (60).
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Angela a portuguesa que foi para a Síria e se juntou ao autodenominado Estado Islâmico
Mulheres como Angela, a noiva portuguesa da Jihad, como o Expresso revelou no ano passado. A filha de alentejanos emigrada na Holanda juntou-se ao Estado Islâmico para ser combatente nas fileiras do exército radical e casou com Fábio, o jihadista português que integra um pequeno grupo de mujahedin estrangeiros na Síria.
Como explica Rafia Zakaria, uma advogada e ativista paquistanesa- americana que tem escrito sobre a militância islâmica no feminino, não é de estranhar que as francesas sejam as que lideram a lista das mulheres que se juntaram ao Daesh. “As meninas muçulmanas que foram recusadas na escola por usarem o véu vivem e aprendem em relativo isolamento, à margem da sociedade francesa”, alega Rafia, recordando casos como o da Ópera de Paris que se recusou a tocar por estar uma senhora de véu na sala e que se recusou a sair. Muitas mulheres muçulmanas em França sentem-se obrigadas a escolher entre a religião e a cidadania, o que as coloca numa posição de perigoso isolamento que pode descambar em extremismo violento.
O recrutamento está, como se sabe, ao virar da esquina da internet – Facebook, Twitter, Instagram, tumblr – com promessas idílicas de uma sociedade perfeita e justa (o Califado), construída à imagem das leis islâmicas, onde todos os seres têm fé inabalável e são escolhidos e acolhidos por Alá, onde as mulheres são “respeitadas e honradas” pelas suas nobres escolhas. Para pessoas destruturadas, desintegradas e sem perspetivas, este discurso de “romanticismo naïv” pode de alguma forma ecoar nas suas cabeças. Algumas ficam ativamente a trabalhar nos bastidores do terror no Ocidente, outras fazem a travessia (“hijrah”) para o Estado Islâmico (normalmente para a Síria, via Turquia). Algumas sentem-se defraudadas com a vida que lhes é depois imposta e tentam voltar ou fugir, mas muitas nem por isso. E são estas que, online, prosseguem o importante trabalho de recrutamento perverso de mais mães de família para o terror.
É o caso de Umm-Layth, uma das bloggers do Daesh mais ativas, que assinou durante meses a página “Diário de uma Muhajirah” no Tumblr, entretanto suspensa. Esta rapariga inglesa que casou com um soldado vivia em Alepo, e diariamente escrevia sobre a vida supostamente idílica das mulheres na organização. “Podes encontrar shampoos, sabonetes e outras necessidades femininas aqui, por isso não é preciso stressar se pensas que vais viver uma vida de mulher das cavernas”, assegurava ela. Outras vezes falava do papel da mulher endeusada no mundo islâmico: “Somos criadas para sermos mães e esposas – por muito que a sociedade ocidental tenha amputado as vossas perspetivas sobres esta mentalidade feminina escondida”.
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Aafia Siddiqui, uma militante da Al-Qaeda e heroína das militantes islâmicas extremistas
Para todas estas mulheres, Aafia Siddiqui é a heroína. Foi a sua libertação que o Estado Islâmico pediu em troca quando negociou a vida do jornalista James Foley, que acabou barbaramente decapitado num vídeo que correu o mundo no ano passado. Siddiqui, uma neurocientista paquistanesa que estudou nos Estados Unidos no MIT e no Brandeis, estava presa no Texas depois de ter sido capturada no Afeganistão em 2008 e condenada dois anos depois por tentativa de homicídio de vários agentes federais. Apesar de ter sido detida muito antes da declaração unilateral do Califado em Junho de 2014, o Daesh não a tinha esquecido porque ela personificava a resistência e a força da mulher islâmica radical que sempre meteu a religião – levada ao extremismo – em primeiro lugar. Como conta a sua biografia “Wanted Womem – Faith, Lies and the War on Terror”, Sidiqqui desafiou a autoridade do líder religioso local, divorciou-se do primeiro marido porque este queria que ela metesse a maternidade à frente da jihad, aderiu à Al-Qaeda e casou em 2002 com Ammar al-Baluchi em Karachi, um jovem muito mais novo, próximo de Kahlid Sheik Mohammed, o cérebro os ataques de 11 de Setembro. Espalhou a doutrina do terror, planeou ataques e virou um exemplo a seguir para as mulheres extremistas.
“Não vale a pena lamentar ter uma filha”, dizem pois alguns simpatizantes do Daesh nas redes sociais. As miúdas são valentes e podem ir à guerra, sublinham. E são essenciais para educar futuros mártires e continuar a espalhar o terror. O arrepiante vídeo abaixo, partilhado no Instagram, diz tudo.
(texto editado no dia 21/11 pelas 8h00 para incluir a informação das conclusões da investigação entretanto reveladas, que concluiram que Hasna Ait Boulahcen não vestia o colete-bomba, mas sim um outro homem que o terá feito explodir, causando a morte de ambos)