Portugal está a vacinar 120 mil pessoas por dia e chegou a minha vez. Cortada a meta dos 10 milhões de inoculações, o país rema contra a quarta maré – sob controlo graças à ciência, à cooperação – e o debate público ferve com o cansaço, a confusão. O calor não ajuda, é natural. Ora, enquanto nós nos entretemos com o extravasar das ânsias, há quem lute com afinco para que, cada vez mais, sejamos maiores e vacinados. E estão a ganhar a corrida. Ontem de manhã fui vacinar-me e o único efeito secundário de que me posso queixar até à data é o de uma forte pontada de agradecimento à força de trabalho incansável, humana e humanitária, na linha da frente do combate à pandemia. Não há paracetamol que me valha.
Como muitos portugueses, vacinei-me num pavilhão. Ao fim de anos da minha vida a fazer piadas com os “pavilhões multiusos”, fetiche autárquico dos anos 80, que tanto dão casa aos balcões das Finanças como às aulas de zumba para séniores nas aldeias, eis um “multiuso” que nenhum gozão podia antecipar: a emergência de saúde. Ver a minha vida dependente de um gimnodesportivo foi levar um estalo de luva branca. Entrei às 10 horas, três minutos antes do que indicava a mensagem, e esperei pouco: não li mais que seis páginas do meu livro. Na cabine, despacharam-me com uma picada no ombro e um sorriso no olhar da enfermeira.
Independentemente das diferentes experiências, sortes e estados de espírito, é difícil não nos tocarmos com o ambiente ali vivido. No centro de vacinação, respira-se uma atmosfera de urgência, exaustão, alívio, esperança e algum nervosismo. Ali, testemunhamos o portento de um Serviço Nacional de Saúde com poucos meios que prioriza o carinho e o profissionalismo no trato. Não me interessam discursos patrióticos – o Estado tem o dever de garantir a segurança e saúde das populações – mas, ali, o embalo prolongado da crise expõe-nos à comoção fácil perante um serviço público que sabemos ser heroico. Sentimo-lo. Num país com poucos recursos e parca estratégia, o dia é frequentemente salvo pela competência e tenacidade das gentes. Todos anunciaram que a vacinação seria um desastre, denunciando a nossa eternamente baixa autoestima, para virmos todos a assistir ao contrário. Conduziram-me a uma zona de recobro para repousar meia horinha, não fosse o diabo tecê-las, e eu cumpri o desígnio nacional de esperar sentado.
Portugal no seu melhor. Para surpresa de quem lá se sentou, começou a ouvir-se um trompete a aquecer. Era o Quinteto de Metais da Sociedade Recreativa da Malveira da Serra, que entrava para animar a espera e acalmar os ânimos dos recém-vacinados. De sopros em riste, os próprios músicos anunciaram estar a matar saudades de estar em palco. Maravilhoso. Ninguém desmaiou, claro está, e se alguém desfaleceu foi ao estilo das fãs dos Beatles, nos anos 60. O pequeno apontamento para os bravos do quinteto foi um enorme contributo e ainda maior símbolo do que o amadorismo português tem de melhor: a humanidade. Enquanto lá estive, as pessoas estavam a gostar tanto que obrigaram uma voluntária a vir informá-las de que a meia hora de recobro já tinha chegado ao fim.
Um dia memorável ao fim de um ano difícil. Tem sido um caminho duro e espinhoso, repleto de falhas e solavancos. Ao fim de tanto tempo, tanto sensacionalismo, tanta precariedade e confusão, as dúvidas agudizam-se. A crise agiganta-se. Se, como bem sabemos, nada nesta história é perfeito, já podemos retirar desta sinuosa luta a certeza de que os arautos do “salve-se quem puder” a perderam. É hoje claro: só o sopro do humanismo solidário nos valerá neste compasso de espera.
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