Oito milhões de vacinas administradas em Portugal, metade da população vacinada com pelo menos uma dose. No Espaço, a anos-luz do planeta Covid, um asteroide recebe o nome do astrofísico português Nuno Peixinho, numa homenagem da União Astronómica Internacional pelo seu contributo para a área. Que honra. Com dez quilómetros de diâmetro, o agora oficialmente asteroide Peixinho, se colidisse com a Terra, seria suficiente para gerar um evento de extinção em massa como o que pôs fim à era dos dinossauros. Mas será o astrofísico Peixinho, no auge da sua carreira, capaz de arranjar um contrato de trabalho digno em Portugal?
“Consegui ter um asteroide para sempre, mas não consigo deixar de ter contratos precários” – lamentou o investigador do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço. Nuno Peixinho mantém-se há mais de vinte anos numa situação profissional incerta, saltitando de bolsa em bolsa, de contrato a prazo em contrato a prazo. Infelizmente, sabemos que é a realidade da investigação científica em Portugal, onde os indicadores de produtividade e os assinaláveis progressos nos vários domínios são sustentados pelo trabalho árduo de milhares de investigadores com vidas precárias: bolsas temporárias, contratos incertos, vínculos pontuais e trabalho não-remunerado. Fazer Ciência em Portugal é fazer trapezismo sem rede. Até quando?
Peixinho começou a trabalhar em 1998 e só teve um contrato até à data. Também já esteve emigrado no Chile, frustrado com a falta de reconhecimento e oportunidades no seu país. Regressou, mas nem com o nome gravado num corpo celeste afasta a possibilidade de ter de voltar a emigrar. É o retrato de uma nação onde quem mais contribui para o progresso e o conhecimento está condenado a viver de bolsas e bolsinhas, num estado de permanente intermitência, sem saber como pagará as contas no mês que vem. É o espelho dos contratos – quando os há – a prazo, sem garantias de continuidade e o de uma “carreira” que não é bem uma carreira. É uma luta. Para além de precária, a carreira de investigação é extremamente competitiva, kafkianamente burocrática e frequentemente esgotante. Pelo menos um terço dos cientistas apresenta sintomas de burnout, segundo um estudo coordenado por Ana Ferreira, investigadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Por norma, um investigador bolseiro ou contratado a prazo pode estar meses sem receber um cêntimo, enquanto espera pelo resultado de um concurso, no qual teve de investir meses de trabalho sem garantia, com prejuízo para a obra em mãos. É o ciclo vicioso dos concursos. No fundo, condenamos à incerteza quem luta pelas poucas certezas que temos. Quem protege as melhores dúvidas que temos.
Precisamos de uma nova estratégia para a Ciência. Hoje, nunca foi tão óbvia a centralidade da investigação na vida de todos. Desde que se instalou, a pandemia teima em expor uma certa inversão na recompensação das profissões. De que nos valeram muitos dos profissionais mais aplaudidos, mais bem tratados e remunerados da sociedade, perante a catástrofe? Continuar a tratar mal quem zela pelo progresso, pela ciência, pela saúde, pela educação, pela cultura, é perpetuar um sistema injusto, que despreza os seus mais preciosos recursos. O subfinanciamento crónico destas áreas condena os melhores cérebros do país à precariedade ou à emigração. O caminho? Reconhecimento, investimento e políticas públicas. As linhas gerais estão latentes na Recomendação da UNESCO sobre a Ciência e os Investigadores Científicos. Agora só falta aplicar.
Nuno Peixinho brilhou o suficiente para batizar um asteroide. Notável, mas é infelizmente um em milhares de cientistas nacionais reconhecidos pelo estrangeiro, destratados no seu país. Sem uma renovada – e séria – aposta na investigação, com integração das carreiras, contratações estáveis, infraestruturas e equipamentos, ouvindo os profissionais na altura de legislar, continuaremos a ter isto. Estamos no momento certo.
Como sociedade, já mostrámos ser bem capazes de tratar um futebolista como um astro. Falta sermos capazes de tratar um astro como um astro.
Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.