Este ano, o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas foi ainda o Dia do Fim do Teletrabalho Obrigatório. O país regressa, portanto, ao escritório, com a exceção de quatro concelhos de risco elevado: Lisboa, Braga, Odemira e Vale de Cambra. Regressa? Talvez não seja o termo certo. Motivado pela pandemia, o desafio às fronteiras do espaço deixará transformações perenes na esfera do trabalho. Se, por um lado, apurámos certezas de que o contacto e a presença física são essenciais à saúde mental, à cooperação e à dinâmica de equipa, também descobrimos um mundo mais produtivo, sustentável e feliz no trabalho remoto. Evidentemente, não sempre, nem para todos – mas sabemos hoje que muitos não vão conseguir olhar para o emprego da mesma forma.
Em março, um estudo do Observatório da Sociedade Portuguesa, da Universidade Católica de Lisboa, concluiu que 80,4% dos inquiridos em teletrabalho gostaria de continuar nesse regime. A ideia de um sistema “misto” também teve aceitação maioritária, com 77,9% a mostrar interesse em trabalhar a partir de casa até quatro dias por semana. Se, para muitos empregadores, o regresso do pessoal ao escritório é um alívio, para muitos profissionais é fonte de ansiedade e há quem esteja disposto a mudar de emprego para continuar à distância. Preguiça? Conforto? Talvez não tanto. Para muitos, a possibilidade de não ir ao escritório todos os dias, conservando o trabalho e a produtividade, representa uma solução de vida sustentável, sem horas perdidas em engarrafamentos, viável, sem rendas absurdas em cidades lotadas, com mais apoio à família, sem lares e baby-sitters, e qualidade de vida, com saúde e mais tempo. O tal bem precioso. Os relatórios dão conta de problemas no labor à distância, como a solidão, o isolamento, a “fadiga do Zoom” – cunhada num estudo da Universidade de Stanford – e um rol de dificuldades na garantia dos direitos laborais, que terá de merecer a maior atenção. Ainda assim, é facto que poucos trabalhadores conseguirão voltar a olhar da mesma forma para a sua rotina d.C. – depois de Covid.
Vários coelhos de uma tele-cajadada só. O Governo português anunciou a abertura de 53 espaços de teletrabalho no interior do País, até ao final deste mês. O objetivo é facilitar a fixação de pessoas e empresas em territórios de baixa densidade, no âmbito do Programa de Estabilização Económica e Social (PEES). A desertificação do interior e o seu esquecimento pelo resto do país – em parte devido à falta de oportunidades fora das áreas metropolitanas – é um dos principais desafios nacionais, com graves consequências sociais, económicas, culturais e ambientais. A inversão deste processo seria um caminho promissor, não apenas para o interior. O cosmopolitismo dos grandes centros é indispensável a muita gente, mas a criação de alternativas seria um oásis para muitos “urbanos”. Nas metrópoles, o desemprego e a especulação imobiliária têm degradado a vida de quem as habita, empurrando jovens e famílias para a pobreza e para a emigração. A ideia de viver em Évora, Viseu, Porto Santo ou São Miguel, com flexibilidade, qualidade de vida, habitação digna e um trabalho decente é hoje mais brilhante, até para as novas gerações. Mesmo que implique viagens e deslocações, num regime híbrido. Basta que seja possível.
As atitudes divergem neste regresso ao presencial, ora em função das lideranças, ora das especificidades óbvias de cada função. David Solomon, CEO da Goldman Sachs, por exemplo, considera o teletrabalho “uma aberração”. Se várias empresas em Silicon Valley, de quem se esperava pioneirismo na questão, estão a chamar todos ao escritório, a Comissão Europeia planeia dar mais flexibilidade aos funcionários e fechar metade dos edifícios até 2030. Noventa por cento dos quadros estão a favor se puderem estar dois ou três dias por semana em teletrabalho. A nível governamental, a Irlanda visa ressuscitar o campo, com o programa Our Rural Future: criar 400 espaços de teletrabalho fora de Dublin, dar isenções fiscais aos teletrabalhadores e respetivas empresas, transferir 20 por cento dos 300 mil funcionários públicos para o trabalho remoto. Por cá, há empresas totalmente a favor e chefias totalmente contra. Globalmente, a tendência terá de ser acompanhada de regulamentação clara que proteja os trabalhadores – da saúde à carga horária, dos apoios ao “direito a desligar”. Mas é facto que poderão representar oportunidades de vida para muita gente – e para a sociedade. Em muitos casos, já representam.
Estar ou não estar? Em muitos casos, estar tem de ser estar. Por enquanto, ainda é difícil servir um jantar à distância, ou erguer uma ponte remotamente. Há encontros e contactos que têm de ser olhos nos olhos. Já nas tarefas que o possibilitem, o caminho terá de ser desenhado caso a caso. De qualquer modo, a massificação forçada do trabalho à distância – como o dos namoros virtuais ou o das festas com os avós no Skype – já é o espelho de um desafio histórico, pelo vírus, de uma das dimensões clássicas do espaço-tempo. O que significava “estar numa reunião” em 2019? E em 2021? O que é “estar numa reunião”? Eis a questão.