Esta semana, Portugal bateu um recorde: 120 mil pessoas vacinadas num dia. Até à data, o País já administrou 2,5 milhões de doses da vacina contra a Covid-19 e o processo tem acelerado à medida que os carregamentos chegam– não obstante os constrangimentos com a AstraZeneca e a Janssen. Nesta reabertura cautelosa, sentimos tudo em simultâneo: exaustão, alívio, medo, impaciência, vulnerabilidade, comoção. Desconsolamo-nos com as injustiças do mundo, expostas como nunca, ao mesmo tempo em que nos tocamos com o heroísmo de quem as combate – também como nunca. Se trazer os nervos à flor da pele é, aqui, humano como errar, a desinformação e o sensacionalismo mediático têm contribuído para inflamar o debate público, seja qual for a questão, seja qual for o tema. E isso é perigoso. Desta vez, a indignação envolve o Censos 2021. Nesta fase crítica da pandemia, onde o rigor, a cooperação e a inteligência são chave, precisamos, acima de tudo, de um pouco de bom senso.
Organizado pelo INE, o Censo é a maior operação de estatística nacional. Realizado de 10 em 10 anos – e envolvendo, só em 2021, 15 mil trabalhadores -, o Censo é um esforço destinado a forjar um retrato do país, para que possamos conhecê-lo, caracterizá-lo, compará-lo, no sentido de identificar tendências e problemas. É, portanto, do maior interesse de todo e qualquer ser vivo em território nacional. A caraterização demográfica da população, com avaliação de indicadores sociais – ligados ao mercado de trabalho, às condições de vida e de habitação – é fundamental para compreender o que se passa no país e melhorá-lo. Neste quadro, o INE enviou uma carta com instruções aos cidadãos para que possam responder a um inquérito, a partir de hoje, 19 de abril. Responder é, mais uma vez, do interesse de todos. Infelizmente, nem toda a gente parece entender essa parte.
Explorada por vários órgãos de comunicação social, a primeira vaga de indignação nasce com a aplicação de coimas a quem não responder aos Censos 2021. Sim, a resposta fidedigna ao mais importante inquérito à população é obrigatória e, como acontece geralmente, há sanções aplicáveis a quem não cumpre o que é obrigatório. Certa insistência na questão das coimas aparenta não estar empenhada em esclarecer dois pontos essenciais: 1) a existência de coimas não é novidade, nem iniciativa do atual governo – as coimas estão previstas no artigo 27º da Lei do Sistema Estatístico Nacional, nº 22/2008, de 2008; 2) a recusa de participação, ou prestação de informação falsa, é punível com coimas em França, nos EUA, ou no Reino Unido, e em muitos outros países desenvolvidos. Não é, portanto, uma deriva autoritária deste governo, nem sequer portuguesa. O esclarecimento destes pontos não parece interessar a quem se esforça por cavalgar a indústria da indignação crónica.
Segundo ponto: a forma. Devido à pandemia, não há questionários porta-a-porta e o Censo acontece quase exclusivamente na Internet. A carta do INE contém instruções e códigos necessários para preencher o inquérito. Aqui, os instigadores da polémica fácil espalharam, nas redes sociais, a informação de que era preciso ter acesso e à vontade com as tecnologias para responder – o que excluiria, como é natural, parte da população. Mais uma vez, é falso. O INE apela ao preenchimento do inquérito pela Internet, por questões de segurança, apresentando alternativas para quem não tem meios nem ajuda: a resposta via telefone ou, então, ao vivo, na junta de freguesia. Está tudo na carta. Haverá ainda quem vá tocar à porta das pessoas, se as alternativas falharem, com atenção reforçada. Quem fica de fora? Ninguém. Várias freguesias têm inclusive feito um trabalho notável para prevenir burlas e surpresas, divulgando os nomes e as fotografias dos recenseadores junto dos idosos e menos informados.
Terceiro mote da indignação: a privacidade. Classificar um inquérito do Instituto Nacional de Estatística, criado para estudar e melhorar o país, com garantia de transparência no tratamento de dados e política de privacidade pública, como uma invasão à privacidade é, no mínimo, cómico. Em 2021, as instituições, os organismos públicos e as ONG’s são as únicas organizações com quem podemos contar para nos proteger da apropriação de dados pelas gigantes e multinacionais tecnológicas, que representa um assalto à nossa privacidade. Todos os dias, deixamos que a Google, o Facebook, a Amazon ou a Apple se apropriem dos nossos dados mais íntimos, das nossas mensagens e conversas privadas, e são as instituições públicas quem se esforça para nos proteger dessa devassa, com regulamentação. Acreditar que o INE, organismo de interesse público, não deve saber quantas pessoas vivem em nossa casa, por questões de privacidade, é, no máximo, falta de cultura cívica. No mínimo, é só muito engraçado. Há questões fundamentais de debate em relação aos inquéritos nacionais, como a inclusão de questões ligadas à discriminação racial sistémica, que não mereceram a atenção da comunidade.
Vivemos há demasiado tempo com as liberdades condicionadas. Com as restrições pandémicas e os sucessivos estados de emergência, é compreensível que nos sintamos limitados no livre arbítrio. É, também, natural e positivo cultivar o questionamento às obrigações e proibições na sociedade, com espírito democrático e amor à liberdade. Ao mesmo tempo, a liberdade dura pouco sem informação, sem reflexão, sem consciência.
Em última análise, a liberdade também depende do nosso bom senso.
Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.