Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
O verão-covid tem sido um desamparo solarengo. A instabilidade, o medo e a degradação económica juntam-se aos constrangimentos da mais elementar logística: dos grandes espaços, como as praias, as esplanadas e os transportes, às coisinhas, como os corrimões onde as velhotas se apoiam, correndo a lavar as mãos, ou os copos de vidro. Equilibrar a liberdade e a restrição, a descontração e a rigidez, é número de acrobata e muitos têm conseguido. Aplausos.
Nas aldeias, onde é costume que as festas e romarias aconteçam, passa-se pouco ou nada, tal é o medo de quem lá mora. Os festivais começam a acontecer, adaptados à peste conforme prevê a lei, sendo que, na maior parte, foram cancelados. Os organizadores assim decidiram, considerando não ter meios para os adaptar, no sentido de garantir que podiam acontecer de acordo com as normas de segurança. O resultado é um verão sem arte e a comunhão que é água para os nossos incêndios morais, a par com uma crise tremenda no sector, já aqui escrevi sobre isso.
À medida que a solidariedade do povo cresce perante a insustentável fome dos artistas, técnicos, produtores e profissionais do ramo, é urgente encontrar formas seguras de desbloquear a vida cultural e empregar pessoas. Precisamos de cultura e de coragem para fazer cultura. Aqui, parece haver um elefante no meio da sala, e já estão mesmo a ver qual é: a Festa do Avante! Também aqui, num cenário em que devíamos estar a apoiar quem tenta manter vivo um sector (e um verão) moribundo, é interessante tentar perceber o porquê de tanta polémica.
Primeiro, a lei. Do ponto de vista legal, a realização de festivais e eventos do género é permitida, desde que adaptados criteriosamente às medidas de segurança impostas pela Direcção Geral da Saúde. Surpresa? Há de ser, para muita gente. As pessoas estão convencidas de que os eventos estão proibidos, mas não estão. O decreto-lei nº 10-I/2020 diz que “é proibida, até 30 de setembro de 2020, a realização ao vivo em recintos cobertos ou ao ar livre de festivais e espetáculos de natureza análoga declarados como tais”, porém “podem excecionalmente ter lugar, em recinto coberto ou ao ar livre, com lugar marcado (…) e no respeito pela lotação especificamente definida pela Direção-Geral da Saúde em função das regras de distanciamento físico que sejam adequadas face à evolução da pandemia da doença COVID-19”. Esta condição legaliza o pouco que, de cultural, tem acontecido.
Por muito que possa soar a “é proibido, mas pode-se fazer” – como no saudoso sketch do Ricardo Araújo Pereira -, no fundo, o decreto-lei resume-se a: todos os festivais podem ser feitos, desde que se adaptem para corresponder a um conjunto de medidas apertadas, definidas pela DGS. Assim tem sido nos teatros, nos cinemas, nas salas de espectáculo, nas festas tradicionais (algumas têm acontecido), nos festivais (vários têm acontecido) e acontecerá, por exemplo, na Feira do Livro de Lisboa, dentro de dias. Em suma, ao contrário do que todos parecem acreditar, ou fingir acreditar, nenhuma exceção foi aberta para a Festa do Avante. É um facto, faça-se luz. Continuar a insistir nessa ideia é promover uma mentira.
De seguida, a saúde pública. No horizonte de uma crise sanitária, é natural que o medo e a preocupação nos atormentem, contudo é essencial fazer por preservar o raciocínio. Há uma instituição (o PCP) que se propõe a organizar um festival público (a Festa do Avante), actuando dentro da lei (o decreto nº 10-I/2020), sem favorecimento face às outras instituições e cumprindo os parâmetros ditados pela autoridade competente de saúde (a DGS). Encarando estes factos, só podem restar duas preocupações: a de que a instituição (PCP) não cumprirá as regras concertadas com a DGS e/ou a que a autoridade (DGS) não vai impor medidas corretas. Da parte do PCP, as medidas já são públicas: alargamento da área do festival (para um total de 30 hectares), aumento das áreas de plateia nos três palcos de grande dimensão ao ar livre, criação de corredores de circulação de sentido único para entradas e saídas, assentos com garantia de distanciamento social adequado, multiplicação dos pontos de higienização, reforço de recursos humanos, criação do “assistente de plateia” que garante a organização dos lugares e equipas em permanência para a desinfecção de sanitários. Entre várias outras medidas.
Além disto, fala-se da redução da lotação para um terço da capacidade (33.000 pessoas) – ou seja, a régua e esquadro, uma calculadora simples diz-nos que cada pessoa usufrui de nove a dez metros quadrados de área para si. Sabendo disto, restar-nos-ia, para estarmos preocupados, crer na possibilidade de a DGS não ter aptidão para impor medidas, mas isso seria apenas ridículo. Em primeiro lugar, porque implicaria assumir que alguém, entre nós, está mais apto para impor procedimentos sanitários do que a mais alta autoridade de saúde do país. Em segundo, porque o estado actual da pandemia em Portugal é a prova de que as restrições têm sido adequadas e os números comprovam-no. Poucos países da Europa Ocidental podem dizer isso. Não faz sentido um alerta tão grande em relação ao que acontece num recinto controlado e altamente vigiado (a Quinta da Atalaia), onde o distanciamento obrigatório é garantido pela organização e fisicamente possível. Esse alarme não é lógico quando nas praias, nos comboios, nos aviões, nos teatros, nas arenas ou nas próprias ruas, o distanciamento é muitíssimo inferior e, na maior parte dos casos, não vigiado. A Praia de Carcavelos, por exemplo, transbordou a lotação máxima (12.100 pessoas), numa área muito inferior, sem controlo, vários dias em Julho.
Por último, os prós e os contras. Como vimos, não há ilegalidade nem injustiça na Festa do Avante. Como também vimos, não há inconsciência nem negligência na Festa do Avante. O que é que resta, para questionarmos a sua realização? Há acusações, no mínimo cómicas, como a de que o Partido Comunista está a dar o peito às balas por dinheiro. Não só é público que a Festa do Avante não dá lucros todos os anos – e, que, em especial este ano é mais provável que não dê, devido ao investimento brutal em segurança e redução da lotação total -, como é preciso não conhecer o festival e o partido que o organiza. Ou então ter muito má vontade.
Noves fora, temos um sector em crise e um país em desânimo atroz. Precisamos urgentemente de cultura. É essencial que as pessoas se possam juntar, divertir, ver espetáculos, ir à bola, com segurança. Neste quadro, se é legal, ético, consciente e possível levar a Festa avante em plena segurança, porque não há de se fazer, se emprega profissionais e oferece cultura ao país? Se os artistas, técnicos e profissionais agradecem a oportunidade de trabalhar e os espectadores o prazer de lá ir, combata-se a peste.