No Chiado, no Natal de 1976, uma grande loja de brinquedos vendia, sem sobressaltos, uma caixa de miniaturas de figuras da Alemanha nazi. Além do inevitável boneco de Adolf Hitler, as crianças tinham à disposição um conjunto de oficiais das SS, maneirinhos, para se entreterem e simularem um Holocausto de trazer por casa. À época, o vespertino Diário de Lisboa registou a “brincadeira” nas suas páginas, ilustrando o estranho espírito natalício exibido nas montras da capital com a respetiva fotografia. Com ironia, e para o presente ser completo, o jornal aconselhava a juntar à referida caixa de brincadeira, a oferta de “algumas metralhadoras”.
Sobre estas miudezas passaram mais de 42 anos.
Os escaparates e as estantes das livrarias encheram-se, entretanto, de reedições de Mein Kampf, biografias do chanceler germânico do Reich e volumes sérios ou menos esforçados sobre os universos recônditos e sinistros da sua mente. Citações de Adolf Hitler, da editora Guerra e Paz, provocou uma das controvérsias recentes à volta da suposta publicação de escritos mais leves, tendentes a humanizar “o monstro”. Responsável por aquela publicação, Manuel S. Fonseca indignou-se, desmentindo tal propósito. “Como editor, sou contra proibições, quero mostrar todos os elementos que permitem às pessoas refletir e pensar. Esse é o meu grande objetivo, levar as pessoas a refletir e a pensar sobre a nossa história”, justificou, em entrevista recente à VISÃO.
Contributo para essa profunda reflexão, presume-se, é a pergunta incluída nas páginas do livro. “Hitler foi bebé?”, questiona-se, em título, num capítulo, ficando o leitor certamente pasmo por saber que, afinal, até há uma fotografia do pequeno Adolfo, “de babygrow branquinho. Igual, angélico, a qualquer bebé, uns olhos vivos surpreendidos e curiosos”, lê-se na referida obra. E nós a pensarmos que ele já nascera “monstro”.
Não divago, mas lembro que, por estes dias, e de acordo com o conteúdo do Relatório Anual de Segurança Interna, divulgado pelo DN, “a intensa e multifacetada atividade de grupos extremistas de direita em Portugal” mereceu especial destaque. E preocupação. A escalada, associada a movimentos identitários e neofascistas, incluirá “conferências, ações de propaganda, celebrações de datas simbólicas, eventos musicais e sessões de treino de artes marciais” e revela, segundo o documento, o “grande dinamismo” da extrema-direita, apostada em contagiar protagonistas da nossa praça e em radicalizar argumentos em voga.
Como qualquer investidor sabe, uma economia livre e de mercado não pode ignorar nichos em expansão. Por isso, o melhor mesmo é recuperar a dita caixa de brinquedos para a Páscoa e talvez, quem sabe, lançar um segundo volume de citações de Hitler, para juntar às amêndoas. Mas agora, por favor, com a foto “queriducha” do pequeno Adolfo em babygrow, na qual se possam apreciar aqueles olhinhos vivos e curiosos.