A interceção de comunicações constitui um dos meios de obtenção de prova mais intrusivos consagrados no ordenamento jurídico português.
Ao longo dos últimos anos — e particularmente nas semanas mais recentes — o debate público, frequentemente alimentado por perceções incompletas ou distorcidas, tem sustentado a ideia de que as escutas telefónicas são utilizadas pelo Ministério Público de forma ampla, recorrente e quase automática.
Contudo, uma análise rigorosa do regime jurídico demonstra precisamente o contrário: trata-se de um mecanismo excecional, rodeado de garantias constitucionais e de exigências processuais muito estritas.
A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra, no artigo 34.º, o princípio da inviolabilidade das comunicações, proibindo qualquer ingerência por parte do Estado, salvo nos casos expressamente previstos na lei e sempre mediante autorização judicial. Assim, a interceção de comunicações configura uma exceção à regra geral, subordinada aos princípios da proporcionalidade (art. 18.º da CRP), e da necessidade.
Este enquadramento constitucional estabelece limites materiais e formais claros, condicionando o legislador e impondo um grau elevado de controlo judicial.
O regime jurídico das escutas encontra-se fundamentalmente previsto nos artigos 187.º a 189.º do Código de Processo Penal (CPP).
O artigo 187.º, n.º 1, define um elenco taxativo de situações em que a interceção é permitida. Entre os crimes que podem justificar escutas incluem-se: terrorismo; criminalidade organizada; tráfico de estupefacientes; corrupção; homicídio; outros crimes puníveis com pena de prisão superior a 3 anos, quando a prova seja impossível ou muito difícil de obter por outros meios.
Trata-se, portanto, de um universo restrito que contraria frontalmente a perceção de que as escutas são um instrumento de uso generalizado pelo Ministério Público.
Nos termos do artigo 187.º, n.º 3, as escutas só podem ser autorizadas mediante despacho judicial fundamentado, que deve: explicitar a necessidade e adequação da medida, justificar a sua finalidade, indicar a duração autorizada (máximo de 3 meses, prorrogável) e demonstrar que não existe meio menos gravoso para alcançar o mesmo resultado probatório.
No que concerne à execução prática, verificamos que também está dependente de um procedimento exigente.
Nos termos do artigo 188.º do CPP, cabe ao órgão de polícia criminal (OPC) que realiza a interceção: lavrar auto de todas as diligências; elaborar relatório descrevendo as passagens relevantes, o seu conteúdo e o respetivo alcance; remeter, de 15 em 15 dias, ao Ministério Público: os suportes técnicos, os autos, e os relatórios elaborados.
O Ministério Público, por seu turno, deve submeter estes elementos ao conhecimento do juiz no prazo de 48 horas.
Na prática, trata-se de um processo altamente exigente. Consideremos, por exemplo, um inquérito a correr termos no DIAP de Santarém, investigado pela GNR. Os militares responsáveis pela investigação devem deslocar-se a Lisboa para proceder à gravação das comunicações e, posteriormente, regressar ao seu posto de trabalho para audição integral das sessões, selecionando apenas as que consideram relevantes para a prova dos fatos criminosos que se investigam.
Este trabalho implica horas de audição contínua, frequentemente em condições logísticas difíceis.
Depois desta seleção, o Ministério Público procede à audição das gravações selecionadas antes de as submeter ao juiz para validação que também as deve ouvir, para ordenar a transcrição e junção ao processo as conversações e comunicações que se consideram indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência.
O procedimento é, portanto, complexo, moroso e altamente técnico — longe da imagem simplista transmitida por vezes no debate público.
A perceção popular de que “as autoridades podem escutar quem quiserem” assenta numa compreensão superficial do processo penal. A complexidade dos requisitos legais, a natureza excecional das escutas e o escrutínio judicial constante tornam impossível qualquer utilização arbitrária desta medida.
Contudo, também é verdade que o regime enfrenta dificuldades significativas: complexidade processual, vulnerabilidade jurídica das provas obtidas, frequentemente contestadas, desafios tecnológicos, com o uso crescente de aplicações encriptadas e os recursos humanos e materiais limitados das entidades que devem investigar os ilícitos criminais.
Num Estado de Direito, a interceção de comunicações deve permanecer uma exceção rigorosa, sujeita a controlo judicial robusto. Mas é igualmente indispensável que o regime seja capaz de acompanhar a evolução tecnológica e os desafios contemporâneos, garantindo simultaneamente a proteção dos direitos fundamentais e a eficácia da justiça penal.
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