Se a Golden Age de Hollywood tinha “bigger than life”, o que temos agora é “bigger than streaming”. A Netflix — esse “monstrinho simpático” que começou a entregar DVDs pelo correio como quem vende Tupperware — decidiu que já é altura de fechar o círculo evolutivo: vai, ao que parece, devorar a Warner Bros., vai engolir a HBO Max, ou seja, prepara-se mesmo para mastigar o que resta da velha ordem cinematográfica de Hollywood. A compra ainda vai passar pelos reguladores, mas a verdade é simples: mesmo que não avance, o mundo já mudou. O cinema já estava meio adoentado; agora recebeu uma espécie de atestado de óbito provisório. Hollywood viveu mais de um século a fabricar realidades paralelas, mas a maior ficção dos últimos tempos é achar que esta aquisição não vai abalar tudo: da distribuição aos festivais, do negócio das salas ao modo como o espectador comum — aquele que já troca as salas de cinema pelo sofá com um estalar de dedos — decide ver filmes. E, claro, há a pergunta eterna, repetida como um refrão deprimido: “É o fim das salas de cinema?” Calma. FIM é uma palavra talvez demasiado forte. Chamemos-lhe antes: mudança irreversível e potencialmente fatal. É mais elegante.
Uma das grandes lições dos últimos anos é simples: subestimar a Netflix é como subestimar o Thanos (o Titã Louco, o supervilão icónico da Marvel Comics). Em 2013, House of Cards já virou de certo modo a televisão e indústria audiovisual do avesso. De repente, as pessoas perceberam que podiam ver uma série inteira no mesmo dia e a TV clássica nunca mais recuperou o fôlego. Agora imagine essa lógica aplicada à Warner Bros., a casa-mãe de Casablanca, O Mundo a Seus Pés (Citizen Kane), Harry Potter, Guerra dos Tronos (Game of Thrones), Superman, Batman, Dune e mais um milhão de IPs que rendem biliões de dólares até quando piscam o olho. A Netflix compra conteúdo porque o conteúdo é petróleo. E, numa economia do streaming, quem controla o petróleo manda no planeta. Mas a narrativa oficial, apresentada com aquele sorriso corporativo que só executivos bem pagos como Ted Sarandos conseguem fazer, tenta tranquilizar o público: “Vamos manter os lançamentos em sala.” Claro, Ted. É a mesma coisa que dizer eu amanhã acordo com os abdominais do Henry Cavill sem ter ido ao ginásio. Porque “manter” significa exatamente o quê? Três semanas de exclusividade? Quatro? Sete dias para cumprir regras dos Oscars e acabou? A janela tradicional de 90 dias já foi ao ar desde a pandemia e agora arrisca cair para 17 dias, o padrão Netflix. Dir-se-ia, o suficiente para levar um filme diretamente da passadeira vermelha para a almofada do sofá.
Do ponto de vista empresarial, a operação é impecável: poupa-se dinheiro — sobretudo nas subscrições ou assinaturas das plataformas de streaming, que associadas às de desporto já são uma renda mensal razoável — eliminam-se duplicações, unificam-se equipas, vende-se a narrativa da “eficiência”. Mas aqui entre nós: eficiência é uma palavra linda até chegar ao cinema. Depois torna-se sinónimo de mais filmes medianos, menos risco artístico, menos diversidade criativa, menos espaço para os filmes autorais que não sejam algoritmicamente rentáveis, menos salas e mais encerramentos discretos, tipo funerais de quinta-feira, a lembrarem a extraordinária série “Sete Palmos de Terra” da HBO, exibida em 2001 na RTP2. A Netflix e a Warner juntas formam, de facto, um mamute, bonito de ver à distância, mas assustador quando calca tudo à volta. Os sindicatos e as associações profissionais de Hollywood e realizadores de todo o mundo — não sei se estará neste manifesto algum português — já gritaram basta. Os realizadores estão em pânico, os argumentistas sentem o chão a fugir, e claro os distribuidores e exibidores tradicionais falam em “ameaça sem precedentes”. E não, não é histeria. Se um estúdio centenário passa a responder à lógica do “streaming-first”, então toda a cadeia do negócio muda completamente: filmes produzidos para sala passam a ser exceção; estreias em sala passam a gesto simbólico; festivais passam a negociar com um algoritmo que decide quando e onde um filme deve existir.
E, no meio disto tudo, entra o espectador ou sai ele para sempre e deixa de ter poder de decisão e escolha. Na verdade, o maior inimigo das salas não é a Netflix. É, talvez, a preguiça do espectador. As pessoas — nós, vocês, eu às vezes, confesso — já não querem levantar-se do sofá. O preço do bilhete subiu, o estacionamento custa a anuidade do ginásio que não usamos e o balde de pipocas e os refrigerantes começam a ameaçar as nossas finanças públicas. Depois há a televisão 4K, o som barulhento dos soundbars ou do subwoofer, a manta confortável, os pijamas, o chazinho ou a cerveja, o telemóvel que vibra com notificações que nos distraem da atenção do filme. É uma luta desigual em relação às salas. A Netflix percebeu isso muito antes de Hollywood. Jogou o jogo melhor do que todos os outros. E agora, com a Warner praticamente no bolso, pode finalmente fazer o que sempre quis: mandar no pipeline inteiro. Do guião ou do argumento ao sofá. Do plano de rodagem ao autoplay. E o espectador é o último obstáculo. Ou começamos a ir ao cinema como quem cumpre um dever cívico — tipo votar — ou as salas vão fechar tão silenciosamente sem que ninguém dê por isso.
Entre as peças que podem cair, há também uma particularmente frágil, embora à partida não pareça: os festivais. Ninguém quer escrever este capítulo, mas alguém tem de o fazer. O impacto será gigantesco. Se a Netflix controla a Warner, controla o catálogo; se controla o catálogo, controla o acesso às estreias; e, se controla o acesso às estreias, começa a ditar quais filmes que vão aos festivais de Veneza, Cannes ou Berlim — se já não controla?— e em que condições. E sabemos bem: a Netflix nunca teve grande paciência para as regras de festivais, muito menos para a obsessão francesa —sobretudo do Festival de Cannes e dos players, que o apoiam — com janelas de exibição. Imagine-se Cannes a lidar com um Dune 3 que estreia dez dias em sala e depois mergulha diretamente no streaming. Imagine-se Veneza a negociar um Batman #qualquercoisa com estreia simultânea no sofá. Imagine-se Berlim a implorar por um Magic Mike 12 só para manter relevância e o seu ativismo político. O cinema de autor já vivia numa corda bamba; agora, com esta fusão, a corda tornou-se mais fina e o vento aumentou. Vamos ver no que vai dar, quando alguns realizadores diziam que o streaming seria uma forma dos filmes de autor, documentários, curtas-metragens, chegarem a mais espectadores.
Do lado dos reguladores, reina uma mistura de inocência e azelhice. A senadora democrata, Elizabeth Warren classificou o negócio como “pesadelo anti-monopólio”. Tem razão. Mas os reguladores norte-americanos dos últimos 20 anos têm sido um desastre: aprovaram a compra da Fox pela Disney, a fusão de cabos e fontes, a Amazon a comprar metade do planeta. Agora querem acordar? Mesmo que bloqueiem a fusão, a mensagem está dada: o futuro da indústria será decidido pelas plataformas de streaming. Ponto final.
E depois há as salas, essa espécie quase em vias de extinção, com cheiro a nostalgia e pipocas demasiado caras e nocivas para quem quer ver um filme sem escutar alguém a remexer no balde ou a comer. As salas já estavam frágeis; agora estão à beira de um colapso lógico. O mais trágico é que a própria Warner, que em 2025 teve alguns dos maiores sucessos de bilheteira do ano, pode ser empurrada para um modelo que não deseja. Porque o que a Netflix quer, a Netflix tem. E se a Netflix acha que 17 dias de exclusividade são suficientes, então serão. O caminho é simples: reduz-se o tempo de exibição, baixa-se a rentabilidade dos cinemas, as pessoas deixam de ir, as salas fecham, o streaming vence, toda a gente diz que foi inevitável. E talvez até tenha sido.
O futuro, portanto, parece uma “Guerra dos Tronos” sem dragões, mas com algoritmos. Esta fusão é mais do que um negócio: é um aviso à navegação. Os próximos anos serão decididos por três forças: reguladores (se acordarem a tempo), consumidores (se ainda quiserem cinemas), e a própria Netflix, que já percebeu que ganhou o jogo muito antes de entrar no tabuleiro. E a Warner? A Warner é o dragão capturado: aquele que, no final da temporada, muda de lado e deita fogo à própria casa.
Podemos ser otimistas, evidentemente. Podemos acreditar que a Netflix vai respeitar a arte, a cultura, os cinemas, os festivais, a cadência natural das estreias. Podemos acreditar em unicórnios. Podemos acreditar em super-heróis. Mas a verdade é mais nua e crua: o cinema não morre, transforma-se — como a Lei de Lavoisier — como já aconteceu antes em outras fases. Quem morre são as salas. Sete palmos abaixo da terra, com um projetor enferrujado e um bilhete por validar. E nós? Nós continuamos no sofá, a carregar em “Próximo Episódio”. O futuro chegou. E não pediu bilhete, basta ser assinante.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.