Há coisas que ninguém nos ensina quando chegamos aos 60. Não há manuais, hotline nem tutorial no YouTube. Um dia acordamos, o corpo range, a memória faz pausas dramáticas e descobrimos que já temos mais aplicações médicas no telemóvel do que contactos de amigos. E, infelizmente, alguns até começam a partir, quase sempre com aquela absurda expressão: “doença prolongada”. E depois, como se já não bastasse o drama biológico, aparece George Clooney — esse homem que parece envelhecer em alta definição — a fazer um filme sobre a crise dos 60. A minha crise. A tua. A nossa. E a roubá-la com uma elegância indecente. O filme chama-se Jay Kelly, de Noah Baumbach (Ruido Branco) — estreia agora na Netflix a 4 de dezembro — mas podia chamar-se Vejam Como Eu Envelheço Melhor do Que Toda a Gente ou, usando aquele livro do Dr. Manuel Pinto Coelho, que nunca li, diga-se, mas que gosto do título, chamado Chegar Novo a Velho. É bastante estimulante. Em Jay Kelly, Clooney interpreta um ator famoso em meltdown existencial, acompanhado por Adam Sandler, numa viagem europeia que é menos sobre paisagens e mais sobre rugas interiores. E enquanto Jay Kelly tenta reencontrar a filha mais nova — porque a mais velha já a “perdeu” —, o sentido da vida e talvez um bocado de firmeza facial. Em setembro passado, sentado na Sala Darsena, na projeção de imprensa da estreia do filme no Festival de Veneza, percebi logo que até a minha crise de idade, tinha um protagonista bem mais bonito do que eu. O que é sempre bastante animador.
O problema maior de Jay Kelly não é a crise. É quem a vive. Clooney, aos 64, exibe a serenidade de quem descobriu o truque supremo do envelhecimento: os óculos escuros. Ele diz que são para esconder olheiras. Suspeito que sejam para esconder o segredo da imortalidade. Porque é fácil falar da idade quando se tem aquele cabelo grisalho cinematográfico, aquela postura de estatuto universal e aquela quinta em França onde a normalidade deve ser gourmet e filhos com 8 anos de idade. Já eu tenho olheiras que não são glamour, são testemunho. E um joelho que estala sempre que penso em subir escadas. Valem-me as aulas de Pilates para fazer alongamentos. Clooney diz em entrevistas que está “demasiado velho para se importar”. Digo o mesmo, mas ninguém acha sexy. Quando Clooney brinca com as partes do corpo que mudam, toda a gente ri. Quando digo “o meu corpo está a mudar”, alguém sugere logo magnésio, fisioterapia, um nutricionista — cuidado com o glúten e não comas pão — e um reumatologista de confiança. Já me esquecia da minha cardiologista. O envelhecimento é democrático, mas a estética não.
No filme, o ator Jay Kelly revisita escolhas, erros, ex-amores, carreiras e fantasmas. Eu revisito consultas, relatórios, análises clínicas e o eterno drama de tentar apertar os atacadores sem precisar de recuperar fôlego e sentir dificuldade em baixar-me. Ele faz uma viagem interior profunda; eu faço uma viagem exterior curta: casa, farmácia, cardiologista e volta devagarinho porque os joelhos ficaram a pensar no assunto. Jay Kelly fala de legado. Eu falo de lombalgias. E não deixa de ser irónico que o cinema, quando trata do envelhecimento, o faça com a Toscana ao fundo e luz dourada. A minha crise tem luz branca de consultório e música ambiente instrumental. Mas há ali algo verdadeiro no filme: a constatação de que já não temos tempo infinito. Clooney conta que, aos 60, disse à mulher, Amal, bastante mais nova do que ele, que em 25 anos terá para lá de 85. Fiz a mesma conta e precisei de me sentar. Não por emoção; por tonturas e suores frios. A certa altura, o filme propõe uma ideia desconcertante: não é o trabalho que define o fim da linha, é o tempo que deixamos de dar aos outros. Clooney diz que ninguém chega ao leito de morte a pensar “devia ter trabalhado mais”. Aos 60, percebemos isso. Passámos décadas a correr atrás de qualquer coisa — carreira, estatuto, aplauso, relevância — e agora damos por nós a correr atrás de outra coisa mais simples: ar. E companhia. E alguém que nos diga “calma, estás vivo, senta-te”. O filme, mesmo sem dizer, lembra uma verdade cruel: há mais passado do que futuro. E isso, convenhamos, não é um pensamento para colocar no Instagram ou no Facebook. Mas também lembra outra coisa: o futuro que sobra pode ser o melhor, se pararmos de fingir que ainda temos 30. Clooney aceitou. Eu estou em fase de beta test.
Há uma dimensão particular em Jay Kelly que mexe certamente connosco: a amizade. Sandler surge como o agente do ator, mas sobretudo como aquele amigo silencioso, meio cansado, meio triste, que nos sabe ouvir, que nos segura quando tudo abana. Aos 20 queremos amigos para aventuras. Aos 40 queremos amigos para jantares. Aos 60 queremos bons amigos — as companheiras ou companheiros certos, porque os filhos estão no tempo deles, a partir para a vida, e vêm aí os netos — para nos aparar quando o mundo decide sacudir-nos. E há um conforto enorme em ver dois homens da nossa geração — sim, Clooney é da nossa geração, deixem-me sonhar — a admitir que não têm tudo resolvido. Que falharam, magoaram, erraram, perderam. Que não são deuses. Clooney sempre recusou o pedestal e talvez seja por isso que continua lá em cima. Tenta ser normal, diz ele e é verdade, posso testemunhá-lo porque já falei com ele. Também tento, mas suspeito que ser normal aos 60 é uma ilusão: ninguém se sente normal quando passa mais tempo a comparar seguros de saúde ou a contar os dias para a reforma — que a partir de 2027, vai para 66 anos e 11 meses — do que a planear férias.
E depois há as viagens pela Europa. Clooney em Veneza era quase pornográfico. Um barco no Grande Canal ou a chegar ao cais do Hotel Excelsior, telemóveis ao alto, Clooney a acenar como se a vida fosse um travelling eterno. Mas, mesmo assim, apanhou uma sinusite, que esteve quase para o impedir de ter ido à passadeira vermelha. Eu, no Lido de Veneza, como sempre estava igual: apanhei um vaporetto, acenei aos telemóveis à volta. Só que ninguém me filmou. Só que ninguém gritou o meu nome. Só que ninguém sabia quem eu era. Detalhes. Ele encontra glamour e reflexão; eu encontro dores lombares. Ele descobre prioridades novas; eu descubro que tenho de comprar palmilhas para os sapatos, por causa das cãibras na planta dos pés.
Mas a grande questão não é Clooney. Somos nós. A verdade é que, aos 60, percebemos que já não temos de provar nada a ninguém. Já não precisamos de status, likes ou medalhas. Precisamos de sossego. De tempo. De gente nossa e de alegria. E talvez por isso Clooney tenha fugido de Los Angeles para uma quinta em França. Não pela terra. Pelo silêncio. Porque, aos 60, o maior luxo é ficar quieto ou viajar. E, quando o filme nos mostra Clooney a abandonar o frenesim para escolher família, filhos, rotina simples, percebemos que é isso que todos queremos: um lugar onde ninguém nos peça para sermos extraordinários. Basta sermos.
Jay Kelly não romantiza tudo. Há arrependimentos, egos feridos, memórias que doem. E há uma pergunta latente: e se não tivermos sido assim tão brilhantes? E se tivermos falhado mais do que vencido? E se não tivermos deixado legado nenhum? A resposta, ainda bem, chega em forma de humor: não interessa. O mundo esquece tudo. Mais vale rirmos antes que ele nos esqueça. Aos 60, o humor é a última defesa contra o colapso emocional. Rimo-nos dos joelhos, da barriga, dos pneuzinhos, da memória curta, da falta de paciência. Porque, se não rimos, choramos. E chorar aos 60 dá mau jeito no maxilar.
No fim do filme, Clooney assiste a um reel da sua carreira. Eu assisto ao reel da minha: fotos antigas, amores falhados, sonhos adiados, pequenas vitórias, grandes trapalhadas. E percebo que, apesar de tudo, estou vivo. Essa é a glória possível. Clooney tem Oscars e quintas. Eu tenho consultas e histórias ainda por contar. E talvez isso baste. Porque envelhecer não é perder. É filtrar. Fica o essencial. Ficam as pessoas. Fica o riso. E, se Clooney é o “sexyagenário” oficial da humanidade, eu aceito ser suplente. Não tenho o charme dele, mas acho que tenho um bocadinho de sentido de humor e, aos 60, são praticamente a mesma coisa. E, se não dá para ser Clooney, dá pelo menos para ser feliz. E isso, meus amigos, já é meio caminho para um final digno de cinema. Mesmo que o meu seja em 2D, sem Dolby Atmos e com um intervalo para esticar as costas e as pernas.