“É mentira! É mentira! Não seja mentiroso!”
Ficou icónica a imagem de um exaltado António Costa a crescer para um eleitor de uma certa idade que, no último dia da campanha para as legislativas de 2019, em pleno Terreiro do Paço, em Lisboa, interpelou o então primeiro-ministro com a acusação de que, durante os incêndios de Pedrógão Grande, em 2017, estava no “gozo de umas merecidas férias”. “Plantado” na arruada do recandidato a primeiro-ministro, nunca se soube se este alegado militante do CDS agiu por convicção, enganado pelas numerosas notícias falsas das redes sociais, ou se tentou, ele próprio, lançar a notícia falsa. Porque bastava rebobinar as imagens desses pavorosos incêndios para se constatar que António Costa não só não estava de férias como se deslocou ao local, logo no dia seguinte à tragédia que, entre outros danos, vitimou 47 pessoas que circulavam na EN 236-1, que liga Figueiró dos Vinhos a Castanheira de Pera.
A 12 de outubro de 2017, a Comissão Técnica Independente que avaliou os acontecimentos de Pedrógão concluiu que a presença de políticos no local prejudicou as operações de socorro. Era de evitar que, no futuro, situação idêntica voltasse a ocorrer. No fundo, a presença de António Costa e do seu séquito de governantes e assessores, bem como a do Presidente da República – demasiado vocal nessa altura… – só serviu para atrapalhar. Ficar na fotografia costuma ser o principal objetivo de políticos em teatro de operações – como ficou demonstrado quando, há precisamente um ano, Luís Montenegro se fez fotografar, envergando um colete salva-vidas, a bordo de uma lancha que procedia a buscas para encontrar, no rio Douro, os corpos de quatro vítimas de um acidente de helicóptero mobilizado no âmbito do combate aos fogos. Este ano, talvez escaldado pelas críticas que então ouviu – preso por ter cão e preso por não ter… –, o primeiro-ministro entendeu não interromper as férias, bem gozadas nos areais dourados de uma praia algarvia. Em consonância, manteve as festividades do Pontal, onde governantes e dirigentes do PSD foram vistos a brindar, bronzeados nas suas camisas brancas de algodão e calças claras de terylene, enquanto o País, um pouco mais a norte, se transformava num braseiro, com bombeiros extenuados, populações em pânico e autarcas em fúria. Para o Pontal, aquilo era fogo que ardia… sem se ver.
Podia o primeiro-ministro ter resolvido alguma coisa ou contribuído para que os incêndios tivessem causado menos estragos, caso tivesse interrompido ou cancelado as suas férias? Provavelmente, não. Ou sim: a pressão adequada de um líder faz os subordinados levantar o rabo da cadeira… Mas há sempre uma pequena dose de demagogia nas reações às fotos de férias de um governante que parece estar no “bem bom” enquanto os governados sofrem. Num mundo em que a imagem impera – e Montenegro sabe disso, ou não se teria feito fotografar na cena de há um ano… –, um primeiro-ministro a trabalhar para o bronze enquanto o País arde resulta num dano reputacional irremediável. Um erro de gestão política que, por ser tão básico e tão “de palmatória”, nem parece vir de um Executivo cuja principal característica é a da eficácia da gestão da informação e da propaganda.
Os primeiros-ministros escolhem para as áreas de soberania do Estado – Defesa, Justiça, Negócios Estrangeiros e Administração Interna – pesos políticos fortes. São áreas que requerem experiência política, reconhecimento público e grande proximidade ao líder. Sempre que se “enganaram” no casting, os primeiros-ministros deram-se mal
Muito lentamente, alguns dirigentes do PSD e governantes lá foram reagindo, brandindo o relatório de 2017 que desaconselha a presença de governantes nos locais das operações. Mas a desculpa é esfarrapada, como bem percebeu o primeiro-ministro – e o Presidente da República, mas o poder executivo não é dele – quando, tarde e a más horas, interrompeu as “merecidas férias” (para citar o nosso idoso de 2019), para comparecer numa reunião da Proteção Civil. E as palavras pedagógicas de Montenegro, numa longa intervenção perante as câmaras de TV, esta segunda-feira, à saída de um briefing da mesma Proteção Civil, demonstram que o primeiro-ministro, finalmente, foi… primeiro-ministro. É pena que seja tarde demais para causar uma primeira boa impressão.
Falei em “desculpa esfarrapada”. Porquê? É que o relatório de 2017 pode desaconselhar a presença de políticos no local dos incêndios, mas não os dispensa de se manterem no seu posto – cada macaco no seu galho – na coordenação executiva dos meios do Estado. Nomeadamente, o primeiro-ministro, em tempo de crise, deve estar onde pertence – em São Bento – e deve estar disponível, 24 horas por dia, para coordenar, solicitar informação, acompanhar e decidir. Coordenação, informação, ação e, sobretudo, EMPATIA – eis o que se lhe pede. Um general não aparece a combater na primeira linha da frente, mas nunca abandona o estado-maior. Ninguém exigira a Montenegro que fosse ajudar a apagar os fogos. Mas exigia-se-lhe, a tempo e horas, e desde o início, explicações, mensagens de força anímica e de esperança e de pedagogia como as que, 24 dias depois do início da crise, deu, na sua declaração de segunda-feira. É verdade, que diabo!, que um cristão tem direito às suas férias –, mas foi Luís Montenegro que quis muito ser primeiro-ministro…
“Vamos embora, filha, que isto é tudo uma grande aldrabice.” A cena decorre no filme icónico da comédia portuguesa A Canção de Lisboa, quando a menina Alice (Beatriz Costa) ganha o concurso de Miss Costureira, por imposição do presidente do júri que, por acaso, é o seu pai (António Silva). “Vamos embora”, disse a ministra Maria Lúcia Amaral, quando os jornalistas tentaram fazer perguntas, no final da pequena “comunicação ao País”, uma “aldrabice” anunciada com a criação de grande expectativa, para as 19h de domingo. Por junto, a ministra anunciou o prolongamento do estado de alerta, agradeceu aos que se empenham no combate aos fogos e solidarizou-se com as vítimas. Leu um comunicado. Esta cena patética foi la pièce de résistence de um desastre comunicacional completo, que já tinha tido um dos seus pontos altos (baixos…) na festa do Pontal e no respetivo discurso desconexo do líder do PSD.
Verdade seja dita, a ministra da Administração Interna, uma excelente provedora de Justiça e uma jurista emérita, é politicamente inexperiente e foi deixada à sua própria sorte em todo este transe. Ficou, por assim dizer, por sua conta e risco. Chega a ser comovente a candura de algumas das suas intervenções, que têm o condão de transmitir uma centelha de “humanidade”. Mas, no domingo, isso não bastava. Como nunca bastou. Historicamente, os primeiros-ministros escolhem para as áreas de soberania do Estado – Defesa, Justiça, Negócios Estrangeiros e Administração Interna – pesos políticos fortes. São áreas que requerem experiência política, reconhecimento público e grande proximidade ao líder. Sempre que se “enganaram” no casting, os primeiros-ministros deram-se mal. Um dos últimos exemplos foi o de António Costa, quando optou por Constança Urbano de Sousa e deu no que deu. Veio, depois, Eduardo Cabrita, com outro peso político e, de início, pelo menos no que diz respeito à prevenção dos incêndios, correu bem. E, no último governo de Costa, o titular foi, nada mais nada menos do que José Luís Carneiro. A lição a tirar é a de que académicos, ministros técnicos ou independentes não encaixam nesses lugares. Claro que José Luís Carneiro, como Eurico de Melo, Jorge Coelho, Augusto Santos Silva, Jaime Gama ou Dias Loureiro, encaixava como uma luva nas ditas funções de soberania.
Em Espanha, também assolada pelos incêndios, o presidente do governo, Pedro Sánchez, e o rei Filipe VI têm-se desdobrado na liderança desta crise, com intervenção diária e forte presença no comando da resposta. Pudera: eles estão bem escaldados com o que aconteceu com as inundações de Paiporta, em novembro do ano passado, e não querem que a história se repita. O melhor que há a esperar, neste triste episódio, é que Luís Montenegro aprenda a lição, como eles aprenderam. A tempo de evitar que um eleitor de “uma certa idade” o interpele, numa próxima campanha eleitoral, atirando-lhe à cara… notícias verdadeiras.